Tuesday, June 20, 2017

Anda com boas leituras



Aqui fica um texto do jornalista Miguel Cadete, publicado no Expresso online, em 16 de junho de 2017, sobre a leitura de Editor Contra.

O QUE ANDO A LER

“Editor Contra – Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodite” (2015, Montag) é, como o título deixa perceber, uma biografia de Fernando Ribeiro de Mello. Em rigor, é uma biografia de Ribeiro de Mello enquanto editor de livros. Mas também não é exatamente como todas as biografias de editores pois inclui textos do seu autor e organizador, Pedro Piedade de Marques, bem como de outros editores contemporâneos como Vítor Silva Tavares e colaboradores como Aníbal Fernandes; e ainda correspondência de Luiz Pacheco, um texto de do artista plástico Eduarda Batarda e outro de Nuno Amorim, na qualidade de ilustradores ou designers gráficos da Afrodite, uma cronologia das suas edições e, claro, prosa do próprio Fernando Ribeiro de Mello.
O volume, desenhado fora do classicismo livreiro, impresso em formato pouco ortodoxo a fugir para o quadrado, procura, na forma, piscar o olho às edições da Afrodite, que também se distinguiam por essa via, apresentando-se com uma organização próxima daquela que é própria de uma revista literária, ainda que as mais de 350 páginas lhe ofereçam índice de mão, como agora se diz, não menosprezável.

No essencial, trata de fixar a carreira de editor de uma das personalidades mais patuscas da cena livreira portuguesa, antes e depois do 25 de Abril. Ribeiro de Mello esteve na berlinda por, juntamente com Natália Correia, ter publicado a “Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica” em 1965, mas também um “Kama Sutra”, traduções aparentemente más de Sacher Masoch, a primeira edição para adultos de “Alice no País das Maravilhas” ou a conhecida “Antologia do Humor Português”, que deram brado até à queda do Estado Novo.


O grande público, como então se dizia, também o ficou a conhecer pelas suas performances, divulgadas pormenorizadamente na imprensa, como a da apresentação de quatro livros com a chancela da Afrodite em sua casa, na banheira, enquanto se lavava. Corria o ano de 1971, e para o efeito tinha sido convidada a imprensa e a sociedade intelectual da época. A conferência de imprensa, com direito a perguntas (e a respostas) teve reações díspares. “A Capital” escreveria “cada um é livre de ganhar o dinheiro que muito bem entender” enquanto o “Diário de Lisboa”, por Assis Pacheco, diria que Fernando Ribeiro de Mello “sabe-a toda, e sabe que a sabe toda”. Seria perseguido, proibido e condenado em tribunal.

Fora do meio, Ribeiro de Mello tornar-se ia conhecido quando aceitou participar do júri de um concurso televisivo, onde aparecia como excêntrico não só devido às bem retorcidas guias do bigode – que lhe valiam o apodo de Dali português – como, obviamente, pelas suas blagues. Uma espécie de enfant terrible que tinha espaço de manobra antes de 1974 mas que o viu severamente restringido após o 25 de Abril. Tanto que a editora iria à falência em poucos anos. Afinal, publicar o “Mein Kempf” (sem qualquer contextualização), as “Cara Lh Amas” de E. M. de Mello e Castro e inúmeras diatribes contra o marxismo e o poder então vigente já não obtinham o mesmo resultado, ainda que o seu editor mantivesse íntegro o seu estatuto de “estar contra”. Em 1990, o próprio diria “Não existe nada que me permita editar contra” e “deixou de haver lugar para o meu antigo papel”.

E é daí, além da pertinência de alguns dos livros (onde se incluem autores maiores e ilustradores, tradutores, artistas e designers tão grandes ou maiores) que publicou, que releva toda a importância de Ribeiro de Mello, homenageado em belos textos de Silva Tavares e Aníbal Tavares, com direito a ajustes de contas. Deixou, com todas as letras, uma ideia de desejo e de liberdade, ou de desejo de liberdade, que hoje faz cada vez mais falta.