Comentário de Vitor Silva Tavares para Peregrinação & Cartas
1
Muitos anos depois, Fernão Mendes
Pinto lançou-se na mais fantástica peregrinação da sua vida! Não se tratava já
de enfrentar os muitos terríveis perigos de uma vida recheada de incidentes.
Tratava-se de sacudir a memória; tratava-se de alquimicar o real vivido em
imaginação viva; tratava-se da mais perigosa das aventuras: enfrentar o vazio
com um discurso, vencer os obstáculos e
a aridez das palavras , conferir ao rumor obscuro a imediata limpidez do
significante.
2
Não se tratava de copiar outra
vez o que já estava copiado nas rugas da biografia. Tratava-se efectivamente de
criar (inventar por e nas palavras).
Isto, meus amigos, ainda hoje os
nossos neo-realistas não percebem – ou, se percebem, não praticam, ou praticam
como se vê. Mendes Pinto é assim um escritor moderno, moderníssimo: se nele algumas
das palavras perderam o uso por causa dos hábitos sociais (linguísticos) dos
vindouros, não se perdeu nele o uso sábio (criativo, original) das palavras. É
ler aquele português e apreciar gulosamente (eroticamente, já agora) os mais
belos planos-sequência de toda a lusa linguagem!
3
Creio que na sua peregrinação
pelo discurso fora não ocorreu a Mendes Pinto fazer o que os escolásticos
chamam estilo. Digamos que ele queria fazer história, contando aquelas história
todas e tão esdrúxulas. Também por isso Fernão Mendes Pinto é um escritor
moderno: nas tintas para os ademanes palacianos da linguagem (o pronto-a-vestir
literato, no leviano e oportunista decurso das modas), marca com nervo e sonho o tempo e o lugar exacto do
homem vivo, isto é: garante o bilhete de identidade da época e o passaporte
para a história.
4
Dizem ou disseram os doutores
realistas que o livro de Mendes Pinto não passa de uma exageração, de uma
megalomania, de um acervo de aldrabices! Logo, não goza de verdade histórica!
Olhem que rica descoberta!
Vir aqui discutir se é verdade ou
mentira o que Mendes Pinto narra como acontecimentos experimentados é vir
discutir de novo o velho sexo dos anjos.
Claro que nem tem discussão: é
verdade pura e simples! Estou a ver o escriba Mendes Pinto com uma pena na mão
a ofender o vazio da folha: o instante é grave («é sempre a vida que se arrisca
quando se afirma») – António Maria Lisboa), grave de mais para nele caber uma
simples questão de fac-símile da tal realidadezinha sem-tirar-nem-pôr que os
realistas tanto de esforçam por definir, encaixotar, legislar, impor única.
Então não havia de ser verdade?
Então o discurso de Mendes Pinto não é em si mesmo autónomo, dispensando pois
muito bem todos os efes e erres dessa tal coisa chata e amorfa que é a
realidade dos doutores realistas?
A Peregrinação, meus amigos, é tão verdade que ainda mexe!
5
Ele há muitas e desvairadas formas
de se viajar: porém, na literatura e assim ou assado, com ou sem recurso das
viagens digamos físicas ou psíquicas efectuadas (as viagens de Fernão Magalhães
ou do Fernando Pessoa, do Jack London ou do Henri Michaux, de barco ou de L. S.
D.), viaja-se realmente pelo espaço da folha a preencher. Já o disse atrás: é
uma viagem tormentosa, poucos saem dela com vida. Não que se negue a capacidade
aventureira, a audácia, a rica experiência acumulada de muito viajante: porém,
não chega. A viagem chegou ali o parou. Daí encontrarem-se a pontapé livros de
viagens que são menos que pó em seus caixões literários. Os viajantes talvez
até nem fossem maus, como andarilhos. O discurso é que não andava.
Ora o discurso (a viagem) de
Mendes pinto é um discurso dinâmico.
Das razões escolares de tal
dinamismo venha um linguista e fale. Tem matéria de sobra. Por mim, que sou
leitor sem lápis na mão e para mais preguiçoso (há mais vidas), sempre direi
que não me custa nada mergulhar naquelas frases longas e abundantes das mais
variadas descrições (os tais planos-sequência) que imprimem à Peregrinação um ritmo tenso e
permanente. Quero dizer: no quentinho de estar a ler um clássico (dedico esta
frase a Luís Pacheco) envolvo-me sem fastio naquela ondulação rítmica, naquela
grave e lenta respiração melódica, viajo também no seu discurso naїf
e extravagante, de certo modo contido e superlativo, refaço-o e refaço-me como
refaço a vida – montagem que julgo caótica mas sei-sinto ordenada de
planos-sequência recheados de tudo quanto há, sem esquecer a memória dos
espaços percorridos e a imaginação dos espaços a habitar. Afinal, esta
constante proposta para a viagem de quem vive.
6
Pelo trajecto do seu discurso (se
quiserem: da sua fala – que é sempre coisa viva e neste momento), Mendes Pinto
botou seu contributo, sua impressão digital, sua mensagem, seu veredicto na
história, não diluindo (antes reforçando, carregando no significativo, inventando
para o exemplar) os contrastes morais e sociais da época. Também neles me
revejo, eu sou outro e de outro tempo português.
A história é assim: um discurso
que viaja.
Por isso vem até mim a
peregrinação de Fernão Mendes Pinto.
Em trânsito, estou sempre muito
agradecido aos excessivamente poetas!
Vítor Silva Tavares
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