Monday, July 24, 2006

Acerca da edição de 1966 da Filosofia na Alcova - Parte II

- Foram várias – esclareceu-me Fernando Ribeiro de Mello. – Houve uma apreensão de cenho carregado que não pronunciava nada de bom. Houve ameaças na PJ (ameaças com vários graus de transparência), um processo no Tribunal Plenário de Lisboa, houve multas. A festa prometia...
- E não decidiu ficar por aí? Achou que essa via, uma hostilização à Censura feita num grau nunca visto em Portugal, era uma importante via de Oposição?
- Achei. Achámos. Se havia Angola, Moçambique e a Guiné a troar ao longe, outros incómodos mais discretos mas que molestrassem perto talvez contribuíssem para abalar o sonambulismo nacional, fanático e solitário, e para nos fazer entrar para o Mundo.
- Longe de se intimidar, ocorreu-lhe o Sade.
- Foi em 1965. A Afrodite tinha feito um falsa trégua dando crer que estava regenerada e se limitaria a obras “possíveis”. Um bom exemplo disto foi aquele Cami, livro para fazer tempo e a bem dizer desinteressante, aproveitador sem imaginação da onda francesa que andava a recuperar humoristas do fim do século. Mas uma noite, na casa da Natália Correia, alguém alvitrou o Sade. Era uma hipótese de provocação máxima, associada ao peso de um grande nome da literatura. Havia dificuldades: quase todos os livros “fortes” do marquês tinham dimensões incompatíveis com os dinheiros e os riscos económicos que a editora podia correr. Nada de Justines nem de Julietas, nada de 120 dias: praticamente só sobrava A Filosofia na Alcova. Como o pintor Cruzeiro Seixas tinha um exemplar da edição Pauvert abrigado na Estrada da Ameixoeira, lancei mãos à obra. O Herberto Helder aceitou fazer a tradução, o João Rodrigues as ilustrações. A meio do empreendimento ocorreu-me que era bom jogar com dois prefácios, um pró e outro contra. Não foi difícil encontrar as pessoas indicadas pois havia, por um lado, a vocação libertina do Luiz Pacheco pronta a dar a cara, por outro lado o peso erudito e reconhecidamente bem comportado do David Mourão-Ferreira.
Assim foi – corria o mês de Março de 66 – que A Filosofia na Alcova apareceu em português com a chancela Afrodite, austera na sua capa de cartolina escura lavrada e com letras de um amarelo dourado a envolver com solenidade quase fúnebre aqueles 2000 exemplares a 80$00 (preço elevado para a época), com muitas gralhas a complicar para pior uma tradução pouco elegante de Helder Henrique de onde em onde interrompida por más ilustrações de João Rodrigues. Mas não fazia mal; mas não fazia, ao cabo e ao resto, muito mal: estava-se perante uma provocação de dimensões inéditas às regras de Salazar, girava subitamente no ar um sintoma de sarilho próximo que convocava a incondicional afirmação de muitas solidariedades.
Não vá, porém, imaginar-se que o editor ignorava as precauções indispensáveis a tomar com este texto “especial” lançado à voracidade do público. Logo na primeira página se avisava os “exmos livreiros” que tinham entre mãos “uma obra cujo significado cultural só podia ser devidamente apreendido por pessoas de sólida e amadurecida formação”, rogando-se “o maior cuidado na venda”, de forma a ser “rigorosamente interdita a menores”. Depois, saltadas cinco páginas, ofereciam-se dois prefácios. À escolha. Para começar, o que se encarregava de não gostar do marquês.
(continua)