Monday, August 27, 2007

João Rodrigues entrevistado para o Jornal de Letras e Artes de 15 de Setembro de 1965

Auto-Retrato



«O surrealismo português é um abjeccionismo adulto, com horário e apto a ganhar a vida» - João Rodrigues

Num momento em que o desenho-ilustração ganha uma importância e uma oportunidade de aplicação que não tem paralelo no passado, escasseiam entre nós personalidades capazes de se imporem, capazes de criarem um estilo autónomo e eficaz. Paradoxalmente, João Rodrigues, que faz questão de ter nascido em Lisboa, não encontrou ainda as solicitações que permitiriam a sua afirmação cabal, e que o talento já revelado parecia dever condicionar. Assíduo frequentador do grupo do «Gelo», reduziu a curto período a sua passagem pela Escola Nacional de Belas Arte, que trocou por uma prolongada estadia em Pari, actualmente, comprometeu-se com um grupo «abjeccionista» em formação, a que entregou colaboração a incluir numa revista que, parece, será em breve publicada. Participou na exposição «Desenho», da Casa da Imprensa e colaborou com desenhos em jornais e revistas como: «Jornal de Letras e Artes», «Europa», «Diário Ilustrado», «Almanaque», etc.; realizou capas de livros; os seus trabalhos foram incluídos na antologia «Surrealismo-Abjeccionismo», organizada por Mário Cesariny de Vasconcelos, com quem produziu alguns poemas e «cadáveres-esquisitos», a meias, coligidos na «Antologia do cadáver esquisito». Mas, para quem conheça de perto a sua personalidade e os seus trabalhos ainda não tornados públicos, impõe-se uma realidade: a imaginação e a qualidade dos seus desenho, o humorismo lúcido e feroz que os caracteriza, são insuficientemente conhecidos e mereciam um aproveitamento sistemático e adequado.

- A sua participação no grupo do «Gelo» e a colaboração em algumas actividades desse grupo resultam de uma filiação no surrealismo?
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Não inteiramente. Para ser surrealista falta-me convicção e ortodoxia. Devo ser considerado, de preferência, um abjeccionista.
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Pode definir o abjeccionismo e as suas possíveis relações com o surrealismo?
- O abjeccionismo foi definido por Pedro Oom como uma atitude de negação sistemática e auto-repulsa. Há relações de simpatia entre o surrealismo e o abjeccionismo. O surrealismo português é um adjeccionismo adulto, com horário e apto a governar a vida. O abjeccionismo é um dadísmo português, mais concretamente, lisboeta. É uma fatalidade de certa circunstância. Portuguesa, da sua impotência.
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Mudando de assunto, vou fazer-lhe uma pergunta que talvez o ajude a caracterizar a sua posição. Quais são os escritores que prefere?
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Vou responder, apesar da sua pergunta me lembrar o «Questionário de Proust». Circunscrevendo-me aos meus interesses mais recentes, citarei Boris Vian que, de modo remoto, até porque francês possui uma concepção abjeccionista da vida. Vejamos o «Outono em Pequim», em que um caminho de ferro, a construir no deserto, terá forçosamente de passar sobre um hotel existente.
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O desenho interessa-lhe como linguagem autónoma ou apenas como ilustração?
- Como actividade pessoal, não me interessa o desenho puro. Dedico-me ao desenho –ilustração, que consiste no domínio de uma linguagem sacrificada a uma intenção, mesmo quando própria.
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Quais os desenhadores portugueses que retiveram a sua atenção?
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Em primeiro lugar, tenho de referir as experiência do Areal. Como ilustrador, considero fascinantes os trabalhos de João Abel.
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E os estrangeiros?
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Entre os ilustradores estrangeiros, Gustave Doré continua a ser o caso que me apaixona.
- O humorismo que tem cultivado é condicionado pela sua atitude abjeccionista?
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O humorismo é, em certa medida, uma fatalidade do meu abjeccionismo profissional. È condicionado pela carência de caminhos preconizada por aquela posição.
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Como concebe o humorismo?
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O humorismo consiste numa atitude sistemática de negação e denúncia, que encontrou uma forma eficaz de comunicação. Concebo-o como uma demonstração clara, por absurdo.
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Que caminho preconiza para a sua actividade futura?
- A minha actividade profissional não me marca como continuidade. Posso ser levado para os mais diferentes caminhos. De resto, não sou capaz de desenhar, actualmente, sem solicitação. Só há actividade artística independente quando não há sentido de auto-crítica. A capacidade crítica torna impossível a realização espontânea e por fazer. A actividade profissional é um acidente e não uma escolha a que nos possamos agarrar.
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Como explica, então, a contínua realização de desenhos no fundo dos pratos, nos tampos das mesas, nos guardanapos de papel, etc?
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Só em público desenho sem encomenda. É uma tentativa de participação num ambiente, num espectáculo.
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O abjeccionismo poderá concretizar-se num movimento colectivo?
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O abjeccionismo nunca é um movimento colectivo. È um caso pessoal ou, quando muito, o encontro de muitos casos pessoais. Isso não põe em causa a sua oportunidade aqui e agora. É uma atitude nobre de prolongamento vital, cujo, limite prefiro não nomear...