Prefácio de André Breton para a Antologia do Humor Negro
André Breton
Pára-Raios
«Para haver cómico, isto é, emanação, explosão, libertação do cómico – diz Baudelaire – é necessário...»
Emanação, explosão: é impressionante o facto de virmos a encontrar estas duas palavras também associadas em Rimbaud, a meio de um poema que não pode ser mais pródigo em humor negro (trata-se, com efeito, do último poema que dele nos ficou, poema em que a «expressão burlesca e totalmente desligada do possível» se ergue, extremamente condensada, poderosa, após mil esforços que têm por fim afirmar primeiro, para depois negarem):
«Sonho»
Reina fome na caserna
Certamente .................
Emanações, explosões,
Um génio: sou gruère!
... ... ... ... ... ... ... ... ...
Coincidência, reminiscência voluntária, citação? Para isso poder ser destrinçado, seria preciso levar muito longe a exegese deste poema que é o mais difícil da língua francesa e cuja exegese nem sequer ainda foi esboçada. Esse facto não faz, porém, que tal coincidência deixe de ser, mesmo assim, significativa. Revela sim, nestes dois poetas, uma mesma preocupação pelas condições, por assim dizer atmosféricas, em que é possível a realização, entre os homens, do misterioso comércio do prazer humorístico. Comércio a que, de há um século e meio para cá, está ligado um preço sempre crescente, que faz do humor o principio do único comércio intelectual de alto luxo. À vista das exigências específicas da moderna sensibilidade, é cada vez mais certo o facto de as obras poéticas, artísticas e científicas, bem como os sistemas filosóficos e sociais desprovidos desta espécie de humor, deixarem muito a desejar e estarem condenados a desaparecer, mais ou menos rapidamente.
Trata-se de um valor que não é só ascendente em relação aos outros, mas que tem também a capacidade de submeter a si todos os outros valores, a ponto de fazer com que muitos deles deixem de ser universalmente cotados. É um tema escaldante este que abordamos, caminhamos em plena terra do fogo. Temos todo o vento da paixão ora contra ora a favor de nós, a partir do momento em que pensamos levantar o véu que cobre este humor, cujos produtos manifestos, com satisfação, nós seleccionamos, na literatura, na arte e na vida.
Conhecemos, com efeito, de forma mais ou menos obscura, o sentido de uma hierarquia cujo grau mais elevado seria atingido pelo homem logo que ele estivesse na posse integral do humor: é nessa medida que nos escapa e que nos escapará, sem dúvida, por longo tempo qualquer definição global do humor. Isto em virtude do princípio segundo o qual «o homem tende naturalmente a deificar aquilo que ultrapassa os limites da sua compreensão». Da mesma forma que «a alta-iniciação, apenas atingida por alguns espíritos da elite, como postulado último da Alta Ciência, dificilmente consegue fazer compreender p modo de raciocinar a divindade¹ (a Alta-Cabala, que é uma redução da Alta-Ciência, dificilmente ao plano terrestre, é ciosamente mantida secreta pelos seus iniciados) mas também é difícil explicar o humor de fazê-lo servir para fins didácticos. Seria o mesmo que querer tirar do suicídio uma moral para a vida. «Sendo uma das mais faustosas prodigalidades do homem, e mesmo o seu ponto máximo, o riso atinge as raias do nada e oferta-nos o nada como penhor.»² Por aqui se imagina o partido que o humor poderia tirar da sua definição e desta principalmente.
Não é de admirar que, nestas condições, os inquéritos até hoje feitos sobre o assunto tenham dado os mais tristes resultados. A um deles, por sinal muito mal dirigido na revista Aventure em 1921, M. Paul Valéry respondia: «A palavra humour é intraduzível. Se não fosse os Franceses não a empregariam. Empregam-na exactamente por causa do carácter indeterminado que lhe atribuem e que faz desta palavra um termo muito apropriado para discussões acerca dos gostos e das cores. Proposição em que essa palavra entremuda logo de sentido; de modo que esse sentido equivale rigorosamente ao conjunto estatístico de todas as frases que contêm ou possam vir a conter semelhante palavra.» Este ponto de vista, absolutamente reticente, é afinal de contas preferível à prolixidade demonstrada por M. Aragon que no seu Traité du Style parece ter querido esgotar o assunto (tal como quem quer afogar um peixe); o humor nunca lhe perdoou e, depois disso, não há ninguém a quem ele tenha desprezado de forma tão radical: «Querem saber as outras partes anatómicas do humor? Pois seja: O dedo no ar para dizer dá-me licença? é a cabeleira. Os olhos, duas oblatas aos vidros. As orelhas, pavilhões de caça. O braço direito chamado simetria representa o palácio da justiça e o esquerdo é um maneta do braço direito... É o que falta aos caldos, às galinhas e às orquestras sinfónicas. Por outro lado, não falta aos calceteiros, aos ascensores a aos chapéus de molas. Houve quem o notasse no trem de cozinha, fez a sua aparição no mau gosto e tem os seus quartéis-de-inverno na moda. Para onde corre? Para o efeito de óptica. A sua morada? Em São-Tomázinho? Os seus autores preferidos? Um tal Binet- Valmer. As suas fraquezas? Os crepúsculos quando são muito ovo estrelado. Não desdenha uma outra afirmação séria. Em resumo, parece-se muito com a mira na espingarda». etc. Trata-se de um exercíciozinho bem feito por um bom aluno da primeira adiantada que se pôs a tratar este tema da mesma forma que se podia ter dedicado ao outro tema e que tem do humor uma visão muito exterior. Todas estas acrobacias são uma fuga à questão. E é difícil que esta questão tenha alguma vez sido tão aprofundada como o foi por M. Léon Pierre-Quint. É ele que na sua obra Le Comte de Lautréamont et Dieu apresenta o humor como uma forma de afirmar não tanto «uma revolta absoluta da adolescência e uma revolta interior da idade adulta» como principalmente uma revolta superior do espírito.
Para poder haver humor... o problema fica posto. Poderá todavia considerar-se que quem fez o humor dar o passo decisivo no domínio do conhecimento foi Hegel, ao elevar-se a uma concepção do humor objectivo. «A arte romântica – diz ele – tinha por princípio fundamental a concentração da alma em si mesma, a qual, vendo que o mundo real não correspondia perfeita e totalmente à sua natureza íntima, frente a ele se deixava ficar indiferente. Esta oposição desenvolveu-se tanto no período da arte romântica que chegámos a ver o interesse centrar-se umas vezes nos acidentes do mundo exterior e outras vezes nos caprichos da personalidade. Mas presentemente, se o dito interesse vai até ao ponto de obrigar o espírito a absorver-se na contemplação exterior e se o humor, ao mesmo tempo, sem perder o seu carácter objectivo e reflectido se deixa cativar pelo objecto e pela sua forma real, então é certo que chagamos, com semelhante penetração íntima, a um humor de alguma sorte objectivo».
Em outro local já nos havíamos notado³ que a esfinge negra do humor objectivo não podia deixar de se encontrar, na nebulosa estrada do futuro, em a esfinge branca do acaso objectivo, sendo toda e qualquer criação humana posterior o resultado desse abraço mútuo.
De passagem, observemos que a situação por Hegel verificada no referente a cada uma das artes (a poesia comanda-as na sua qualidade de arte universal e traça-lhes o caminho em conformidade com o seu, pois ela é a única a poder representar as sucessivas situações da vida) é suficiente para nos explicar que a forma de humor que nos interessa fez a sua primeira aparição muito mais cedo na poesia do que, por exemplo, na pintura. A intenção satírica, moralizadora, existente em todas as obras do passado, que com o humor tenham qualquer relação de influência degradante, expõe-nas a cair no caricato. Quando muito, tentaríamos abrir excepção para algumas obras de Hogarth, de Goya, e considerar como casos reservados outros em que o humor se faz pressentir um pouco mais, não podendo ser dado senão como hipotético na quase totalidade da obra pictural de Seurrat. O triunfo do humor no estado puro e manifesto, a nível plástico, parece ter que se situar, no tempo, muito mais próximo de nós, reconhecendo como seu inicial e genial artesão o artista mexicano José Guadalupe Posada que em admiráveis gravuras sobre madeira, de carácter popular, nos faz sentir toda a ressaca da revolução de 1910 (as sombras de Villa e de Fierro, em paralelo com essas composições, podem informar-nos sobre o que é a passagem do humor de especulação ao de acção, ao mesmo tempo que o México, com os seus esplendorosos arrebiques fúnebres, se afirma como terra prometida do humor negro).
Desde então, o humor vive na pintura como em país conquistado. A sua erva negra não deixou ainda de proliferar onde quer que tenha passado o cavalo de Max Ernst «A Noiva do Vento». Limitamo-nos a falar de livros, nada há mais completo neste campo, nem mais exemplar, do que os seus três romances em colagens: La Femme sans Têté, Rêve d´une petite fille qui voulut entrer au Carmel. Une Semaine de Bonté ou les Sept Eléments capitaux.
O cinema, na medida em que não apenas representa as acções sucessivas da vida, como a poesia, mas também pretende realizar o encadeamento delas; na medida em que, para comover, tende para situações extremas, iria descobrir o humor logo às primeiras tentativas. As primeiras comédias de Mack Sennnett, alguns filmes de Chaplin (O Evadido, O Peregrino), os inesquecíveis Fatty e Picratt vão à frente na longa fila que rigorosamente vai dar nesses pequenos-almoços ao sol da meia-noite que são One Million Dollars e Animal Crakers, bem como essas excursões às profundas grutas mentais de Fingal e de Pouzzoles, que são Un Chien Andalou e L´Âge d´Or de Buñel e Dali, passando por Entr´acte, de Picabia.
«Vai sendo tempo – diz Freud – de nos familiarizarmos com algumas das características do humor. O humor tem não só alguma coisa de libertador, analogamente ao espírito e ao cómico, mas também algo de sublime e elevado, traços que se não descortinam naquelas duas ordens de aquisição ao prazer através da actividade intelectual. O sublime está evidentemente ligado ao triunfo do narcisismo, à invulnerabilidade do ego que se afirma vitoriosamente. O ego recusa deixar-se pôr a nu, não deixa que o obriguem a ter que sofrer a realidade exterior, não admite que os traumatismos do mundo exterior o possam atingir. Pelo contrário, verifica que tudo isso pode ser ocasião de prazer». Freud dá-nos como exemplo, grosseiro mas suficiente, o caso do condenado levado à forca, numa segunda-feira, que afirma: «Aqui está uma semana que começa bem.» Sabemos que no final da análise por ele realizada sobre o humor ele declara ver no humor um modo de pensar que tenta poupar-se ao desgaste exigido pela dor. «Atribuímos a este tão frágil prazer, nem sabemos bem porquê, um carácter de alto valor; ele é para nós um meio particularmente capaz de nos libertar e exaltar.» Segundo ele, o segredo da atitude humorística residiria na extrema possibilidade que certos seres têm de, em caso de alerta grave, deslocarem o acento psíquico do ego, passando-o para o superego, sendo este geneticamente concebido como o herdeiro da pressão paterna («ele mantém muitas vezes o ego debaixo de uma severa tutela continuando a tratá-lo da forma como anteriormente os pais – ou o pai – tratavam o filho.»)
Pareceu-nos interessante confrontar com esta tese um certo número de atitudes particulares que revelam do humor, ou de certos textos em que literariamente o humor foi levado ao mais alto grau de expressão. Com vista a reduzir tudo a um único dado fundamental comum, julgamos poder, sem prejuízo das reservas que se fazem em Freud à distinção necessariamente artificial entre o id (soi), o ego sujeito (moi) e o superego (surmoi) usar do vocabulário freudiano para maior comodidade de exposição.
Não queremos desculpar-nos pelo facto de nesta escolha termos usado de grande parcialidade, pois que semelhante disposição nos parece ser a que convém a um assunto como este. O maior receio, a única coisa a lamentar, seria o facto de não podermos ser ainda mais rigorosos. Para tornar parte no torneio negro do humor é preciso é preciso ter passado em numerosas eliminatórias. O humor negro é limitado por muita coisa, como seja a estupidez, a ironia céptica, o gracejo sem gravidade… (enumerarmos tudo levava-nos muito longe) mas ele é, por excelência, o inimigo mortal da sentimentalidade com cara de desespero – a sentimentalidade em fundo azul – de uma certa fantasia a curto prazo que passa bastas vezes por poesia, que em vão procura submeter o espírito aos seus caducos artifícios e que não poderá já erguer ao alto, por muito mais tempo, entre os grãos de papoila, o seu pescoço de pega coroada.
¹ Armand Petitjean, Imagination et Réalisation (Donoël et Steale, 1936).
² Pierre Piob: Les Mystéres de Dieux. Vénus (ed. Daragon, 1909)
³ Position politique du Surréalisme (1935) Position de l´object surrealiste.
1939
Trad. de Manuel João Gomes
«Para haver cómico, isto é, emanação, explosão, libertação do cómico – diz Baudelaire – é necessário...»
Emanação, explosão: é impressionante o facto de virmos a encontrar estas duas palavras também associadas em Rimbaud, a meio de um poema que não pode ser mais pródigo em humor negro (trata-se, com efeito, do último poema que dele nos ficou, poema em que a «expressão burlesca e totalmente desligada do possível» se ergue, extremamente condensada, poderosa, após mil esforços que têm por fim afirmar primeiro, para depois negarem):
«Sonho»
Reina fome na caserna
Certamente .................
Emanações, explosões,
Um génio: sou gruère!
... ... ... ... ... ... ... ... ...
Coincidência, reminiscência voluntária, citação? Para isso poder ser destrinçado, seria preciso levar muito longe a exegese deste poema que é o mais difícil da língua francesa e cuja exegese nem sequer ainda foi esboçada. Esse facto não faz, porém, que tal coincidência deixe de ser, mesmo assim, significativa. Revela sim, nestes dois poetas, uma mesma preocupação pelas condições, por assim dizer atmosféricas, em que é possível a realização, entre os homens, do misterioso comércio do prazer humorístico. Comércio a que, de há um século e meio para cá, está ligado um preço sempre crescente, que faz do humor o principio do único comércio intelectual de alto luxo. À vista das exigências específicas da moderna sensibilidade, é cada vez mais certo o facto de as obras poéticas, artísticas e científicas, bem como os sistemas filosóficos e sociais desprovidos desta espécie de humor, deixarem muito a desejar e estarem condenados a desaparecer, mais ou menos rapidamente.
Trata-se de um valor que não é só ascendente em relação aos outros, mas que tem também a capacidade de submeter a si todos os outros valores, a ponto de fazer com que muitos deles deixem de ser universalmente cotados. É um tema escaldante este que abordamos, caminhamos em plena terra do fogo. Temos todo o vento da paixão ora contra ora a favor de nós, a partir do momento em que pensamos levantar o véu que cobre este humor, cujos produtos manifestos, com satisfação, nós seleccionamos, na literatura, na arte e na vida.
Conhecemos, com efeito, de forma mais ou menos obscura, o sentido de uma hierarquia cujo grau mais elevado seria atingido pelo homem logo que ele estivesse na posse integral do humor: é nessa medida que nos escapa e que nos escapará, sem dúvida, por longo tempo qualquer definição global do humor. Isto em virtude do princípio segundo o qual «o homem tende naturalmente a deificar aquilo que ultrapassa os limites da sua compreensão». Da mesma forma que «a alta-iniciação, apenas atingida por alguns espíritos da elite, como postulado último da Alta Ciência, dificilmente consegue fazer compreender p modo de raciocinar a divindade¹ (a Alta-Cabala, que é uma redução da Alta-Ciência, dificilmente ao plano terrestre, é ciosamente mantida secreta pelos seus iniciados) mas também é difícil explicar o humor de fazê-lo servir para fins didácticos. Seria o mesmo que querer tirar do suicídio uma moral para a vida. «Sendo uma das mais faustosas prodigalidades do homem, e mesmo o seu ponto máximo, o riso atinge as raias do nada e oferta-nos o nada como penhor.»² Por aqui se imagina o partido que o humor poderia tirar da sua definição e desta principalmente.
Não é de admirar que, nestas condições, os inquéritos até hoje feitos sobre o assunto tenham dado os mais tristes resultados. A um deles, por sinal muito mal dirigido na revista Aventure em 1921, M. Paul Valéry respondia: «A palavra humour é intraduzível. Se não fosse os Franceses não a empregariam. Empregam-na exactamente por causa do carácter indeterminado que lhe atribuem e que faz desta palavra um termo muito apropriado para discussões acerca dos gostos e das cores. Proposição em que essa palavra entremuda logo de sentido; de modo que esse sentido equivale rigorosamente ao conjunto estatístico de todas as frases que contêm ou possam vir a conter semelhante palavra.» Este ponto de vista, absolutamente reticente, é afinal de contas preferível à prolixidade demonstrada por M. Aragon que no seu Traité du Style parece ter querido esgotar o assunto (tal como quem quer afogar um peixe); o humor nunca lhe perdoou e, depois disso, não há ninguém a quem ele tenha desprezado de forma tão radical: «Querem saber as outras partes anatómicas do humor? Pois seja: O dedo no ar para dizer dá-me licença? é a cabeleira. Os olhos, duas oblatas aos vidros. As orelhas, pavilhões de caça. O braço direito chamado simetria representa o palácio da justiça e o esquerdo é um maneta do braço direito... É o que falta aos caldos, às galinhas e às orquestras sinfónicas. Por outro lado, não falta aos calceteiros, aos ascensores a aos chapéus de molas. Houve quem o notasse no trem de cozinha, fez a sua aparição no mau gosto e tem os seus quartéis-de-inverno na moda. Para onde corre? Para o efeito de óptica. A sua morada? Em São-Tomázinho? Os seus autores preferidos? Um tal Binet- Valmer. As suas fraquezas? Os crepúsculos quando são muito ovo estrelado. Não desdenha uma outra afirmação séria. Em resumo, parece-se muito com a mira na espingarda». etc. Trata-se de um exercíciozinho bem feito por um bom aluno da primeira adiantada que se pôs a tratar este tema da mesma forma que se podia ter dedicado ao outro tema e que tem do humor uma visão muito exterior. Todas estas acrobacias são uma fuga à questão. E é difícil que esta questão tenha alguma vez sido tão aprofundada como o foi por M. Léon Pierre-Quint. É ele que na sua obra Le Comte de Lautréamont et Dieu apresenta o humor como uma forma de afirmar não tanto «uma revolta absoluta da adolescência e uma revolta interior da idade adulta» como principalmente uma revolta superior do espírito.
Para poder haver humor... o problema fica posto. Poderá todavia considerar-se que quem fez o humor dar o passo decisivo no domínio do conhecimento foi Hegel, ao elevar-se a uma concepção do humor objectivo. «A arte romântica – diz ele – tinha por princípio fundamental a concentração da alma em si mesma, a qual, vendo que o mundo real não correspondia perfeita e totalmente à sua natureza íntima, frente a ele se deixava ficar indiferente. Esta oposição desenvolveu-se tanto no período da arte romântica que chegámos a ver o interesse centrar-se umas vezes nos acidentes do mundo exterior e outras vezes nos caprichos da personalidade. Mas presentemente, se o dito interesse vai até ao ponto de obrigar o espírito a absorver-se na contemplação exterior e se o humor, ao mesmo tempo, sem perder o seu carácter objectivo e reflectido se deixa cativar pelo objecto e pela sua forma real, então é certo que chagamos, com semelhante penetração íntima, a um humor de alguma sorte objectivo».
Em outro local já nos havíamos notado³ que a esfinge negra do humor objectivo não podia deixar de se encontrar, na nebulosa estrada do futuro, em a esfinge branca do acaso objectivo, sendo toda e qualquer criação humana posterior o resultado desse abraço mútuo.
De passagem, observemos que a situação por Hegel verificada no referente a cada uma das artes (a poesia comanda-as na sua qualidade de arte universal e traça-lhes o caminho em conformidade com o seu, pois ela é a única a poder representar as sucessivas situações da vida) é suficiente para nos explicar que a forma de humor que nos interessa fez a sua primeira aparição muito mais cedo na poesia do que, por exemplo, na pintura. A intenção satírica, moralizadora, existente em todas as obras do passado, que com o humor tenham qualquer relação de influência degradante, expõe-nas a cair no caricato. Quando muito, tentaríamos abrir excepção para algumas obras de Hogarth, de Goya, e considerar como casos reservados outros em que o humor se faz pressentir um pouco mais, não podendo ser dado senão como hipotético na quase totalidade da obra pictural de Seurrat. O triunfo do humor no estado puro e manifesto, a nível plástico, parece ter que se situar, no tempo, muito mais próximo de nós, reconhecendo como seu inicial e genial artesão o artista mexicano José Guadalupe Posada que em admiráveis gravuras sobre madeira, de carácter popular, nos faz sentir toda a ressaca da revolução de 1910 (as sombras de Villa e de Fierro, em paralelo com essas composições, podem informar-nos sobre o que é a passagem do humor de especulação ao de acção, ao mesmo tempo que o México, com os seus esplendorosos arrebiques fúnebres, se afirma como terra prometida do humor negro).
Desde então, o humor vive na pintura como em país conquistado. A sua erva negra não deixou ainda de proliferar onde quer que tenha passado o cavalo de Max Ernst «A Noiva do Vento». Limitamo-nos a falar de livros, nada há mais completo neste campo, nem mais exemplar, do que os seus três romances em colagens: La Femme sans Têté, Rêve d´une petite fille qui voulut entrer au Carmel. Une Semaine de Bonté ou les Sept Eléments capitaux.
O cinema, na medida em que não apenas representa as acções sucessivas da vida, como a poesia, mas também pretende realizar o encadeamento delas; na medida em que, para comover, tende para situações extremas, iria descobrir o humor logo às primeiras tentativas. As primeiras comédias de Mack Sennnett, alguns filmes de Chaplin (O Evadido, O Peregrino), os inesquecíveis Fatty e Picratt vão à frente na longa fila que rigorosamente vai dar nesses pequenos-almoços ao sol da meia-noite que são One Million Dollars e Animal Crakers, bem como essas excursões às profundas grutas mentais de Fingal e de Pouzzoles, que são Un Chien Andalou e L´Âge d´Or de Buñel e Dali, passando por Entr´acte, de Picabia.
«Vai sendo tempo – diz Freud – de nos familiarizarmos com algumas das características do humor. O humor tem não só alguma coisa de libertador, analogamente ao espírito e ao cómico, mas também algo de sublime e elevado, traços que se não descortinam naquelas duas ordens de aquisição ao prazer através da actividade intelectual. O sublime está evidentemente ligado ao triunfo do narcisismo, à invulnerabilidade do ego que se afirma vitoriosamente. O ego recusa deixar-se pôr a nu, não deixa que o obriguem a ter que sofrer a realidade exterior, não admite que os traumatismos do mundo exterior o possam atingir. Pelo contrário, verifica que tudo isso pode ser ocasião de prazer». Freud dá-nos como exemplo, grosseiro mas suficiente, o caso do condenado levado à forca, numa segunda-feira, que afirma: «Aqui está uma semana que começa bem.» Sabemos que no final da análise por ele realizada sobre o humor ele declara ver no humor um modo de pensar que tenta poupar-se ao desgaste exigido pela dor. «Atribuímos a este tão frágil prazer, nem sabemos bem porquê, um carácter de alto valor; ele é para nós um meio particularmente capaz de nos libertar e exaltar.» Segundo ele, o segredo da atitude humorística residiria na extrema possibilidade que certos seres têm de, em caso de alerta grave, deslocarem o acento psíquico do ego, passando-o para o superego, sendo este geneticamente concebido como o herdeiro da pressão paterna («ele mantém muitas vezes o ego debaixo de uma severa tutela continuando a tratá-lo da forma como anteriormente os pais – ou o pai – tratavam o filho.»)
Pareceu-nos interessante confrontar com esta tese um certo número de atitudes particulares que revelam do humor, ou de certos textos em que literariamente o humor foi levado ao mais alto grau de expressão. Com vista a reduzir tudo a um único dado fundamental comum, julgamos poder, sem prejuízo das reservas que se fazem em Freud à distinção necessariamente artificial entre o id (soi), o ego sujeito (moi) e o superego (surmoi) usar do vocabulário freudiano para maior comodidade de exposição.
Não queremos desculpar-nos pelo facto de nesta escolha termos usado de grande parcialidade, pois que semelhante disposição nos parece ser a que convém a um assunto como este. O maior receio, a única coisa a lamentar, seria o facto de não podermos ser ainda mais rigorosos. Para tornar parte no torneio negro do humor é preciso é preciso ter passado em numerosas eliminatórias. O humor negro é limitado por muita coisa, como seja a estupidez, a ironia céptica, o gracejo sem gravidade… (enumerarmos tudo levava-nos muito longe) mas ele é, por excelência, o inimigo mortal da sentimentalidade com cara de desespero – a sentimentalidade em fundo azul – de uma certa fantasia a curto prazo que passa bastas vezes por poesia, que em vão procura submeter o espírito aos seus caducos artifícios e que não poderá já erguer ao alto, por muito mais tempo, entre os grãos de papoila, o seu pescoço de pega coroada.
¹ Armand Petitjean, Imagination et Réalisation (Donoël et Steale, 1936).
² Pierre Piob: Les Mystéres de Dieux. Vénus (ed. Daragon, 1909)
³ Position politique du Surréalisme (1935) Position de l´object surrealiste.
1939
Trad. de Manuel João Gomes
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