Monday, October 15, 2007

Prefácio à 2.ª edição da Vénus




Prefácio à 2.ª edição de A Vénus de Kazabaïka, de Sacher-Masoch (Relógio d’Água Editores, 1994).
Escrito por Ana Hatherly, é um interessante e raro documento sobre Fernando Ribeiro de Mello e as suas Edições Afrodite.

"Em 1966, quando foi publicada pela primeira vez esta tradução da célebre Venus à la forrure, de Sacher-Masoch, estava-se em plena guerra colonial, os ecos do Surrealismo (que surgira entre nós na segunda parte do século) eram ainda fortes e discutia-se acaloradamente a actividade editorial de Fernando Ribeiro de Mello, esse jovem que poucos anos antes viera do Porto.
Quando Fernando Ribeiro de Mello chegou a Lisboa no início dos anos 60, rondava os 20 anos de idade. Era pequenino, franzino, loiro, nervoso, libidinoso e excêntrico. Apesar de todo o seu dinamismo tinha algo de antiquado na sua aparência, um quê de século XIX, que aliás cultivava. Usava grandes bigodes retorcidos, barbicha e, em vez de gravata, uma lavallière.
Fernando Ribeiro de Mello tinha poucos recursos financeiros mas um grande cabedal de imaginação e audácia que, mais tarde e durante um certo tempo, viriam a fazer dele um editor destacado neste país. Porém, em 1991, quando morreu com 50 anos de idade, há muito que estava já arruinado.
Conheci-o pouco depois de ele começar a circular por Lisboa. Foi em casa de Natália Correia, cujo salon eu frequentava e que era então um ponto de encontro obrigatório para a intelligentsia anti-fascista da capital, simultaneamente aguerrida e boémia.
Natália Correia tornou-se mentora do audacioso jovem, influindo na programação das suas primeiras publicações, que surgiram com a chancela de Afrodite, Edições de Fernando Ribeiro de Mello. Até 1966 já tinham saído volumes como O Vinho e a Lira, de Natália Correia, e a Antologia de Vanguarda – 4 Autores da Novela Portuguesa Contemporânea, edições de qualidade, como outras que se lhe seguiriam.
Mas Fernando Ribeiro de Mello publicara também uma tradução do Kama-Sutra, uma tradução da Filosofia na Alcova, de Sade, e a célebre Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia, que tanta celeuma levantou.
O conjunto destas edições, consideradas escandalosas, teve um impacte enorme na sociedade da época em virtude da violenta repressão que suscitaram: as obras foram apreendidas, o editor processado, alguns colaboradores responderam em tribunal por ofensa à moral pública.
Foi neste quadro de agitada perseguição a Fernando Ribeiro de Mello e suas edições proibidas que surgiu a minha tradução da Vénus de Masoch. É claro que eu estava perfeitamente ao corrente de tudo o que se passava, porque também eu o apoiava, e quando a tradução apareceu e foi imediatamente apreendida, ninguém se admirou – e eu muito menos.
Com mais esta publicação apreendida, a perseguição a Fernando Ribeiro de Mello redobrou, e o pobre rapaz, não tendo já onde esconder os livros que tinha em armazém (Kama-Sutras, Sades, etc., que vendia às escondidas), pediu-me autorização para guardar em minha casa alguns deles enquanto as buscas estavam no auge, ao que eu acedi, empilhando no quarto da criada grande quantidade dessas obras que a polícia procurava.
Nessa altura eu morava num belo apartamento no Bairro Azul, na Rua Fialho de Almeida, e quando a PIDE veio revistar a minha casa por ter recebido uma denúncia, a sua visita era esperada. O agente que veio, porém, concentrou a sua atenção na minha biblioteca, onde havia muitos livros então proibidos, não se lembrando de revistar o quarto da criada, pelo que não viu os livros de Fernando Ribeiro de Mello aí escondidos.
A respeito deste incidente escrevi um pequeno poema que só publiquei muito mais tarde (em Poesia 1958-78) e que incluí num grupo intitulado Poemas de Crítica e de Revolta, 1964/66. Reza assim:

Bateu à porta o agente
mostrou o cartão e disse
fomos informados.
Entrou
percorreu a casa toda
revistou revistou os livros.
Era já tarde
era a segunda vez.
Disse
tenha cautela.
Saiu.
Fechou a porta.
Fechei-me.

A primeira edição desta versão portuguesa da Vénus de Masoch, hoje uma raridade bibliográfica, foi portanto apreendida, mas embora a minha casa tivesse sido revistada, eu nunca fui verdadeiramente molestada pela PIDE, nem tive que responder em tribunal. É que a obra, embora fosse claramente transgressora, inclusive por estar integrada no conjunto das edições proibidas de Fernando Ribeiro de Mello, realmente não continha nem palavras, nem actos, nem imagens obscenas, e mesmo as ilustrações que a edição oferecia eram mais divertidas do que chocantes.
Na verdade, toda a novela, em si, para o público de hoje como para o público de então, é talvez mais divertida do que erótica, mas nem por isso deixa de ser uma obra impressionante, porque, para além de tudo o que nela hoje nos pode parecer ingénuo e até um pouco cómico, contém um substrato de facto perturbante que acaba por impor-se em nós duma forma insidiosa e persistente. Não foi por acaso que tal obra, literariamente pouco significativa, chamou a atenção de Havelock Ellis e dos estudiosos da psicologia da sexualidade em geral, os quais, definindo masoquismo e sadismo, reconheceram a dor como fonte indissociável do prazer erótico – mas não há prazer que não seja erótico, sensual.
A íntima ligação que existe entre o erotismo e o sofrimento, entre o prazer e o sacrifício, é hoje um dado adquirido, mas nunca foi desconhecido dos mártires nem dos tiranos de todos os tempos – todos estamos ainda lembrados das horríveis facetas que assumiu no nazismo e no fascismo.
A minha tradução desta Vénus de Masoch, integrava-se, portanto, num plano geral de edições destinadas a subverter, a agitar, a perturbar um estado de coisas contra o qual poucas armas tínhamos na mão e que só a sublevação de Abril de 1974 pôde derrubar.
O meio literário de então, numa época em que era difícil ser-se independente, pode dizer-se que estava dividido em dois grandes grupos: dum lado, os escritores francamente do regime, cujos nomes eram bem conhecidos; do outro, os contestatários: os neo-realistas, defensores do realismo socialista; os surrealistas, já em fase final; os experimentalistas, em fase nascente. Destes três, nenhum apoiava o outro, mas todos convergiam no seu sentido de contestação, na sua acção sub-vertora, na sua intervenção contrária ao poder estabelecido. E se os neo-realistas pareciam desprovidos de sentido do lúdico, entre os surrealistas e os experimentalistas dominava o sentido do humor, uma das suas armas mais poderosas.
Na primeira fase da acção editorial de Fernando Ribeiro de Mello – anos 60 e 70 – encontra-se, de certa forma, cristalizada toda uma linha de pensamento criativo que grandemente deriva do Surrealismo-Abjeccionismo, nessa altura já no fim como movimento, mas cujos eflúvios pairavam ainda no ar.
E claro que em 1966, quando surgiu a Vénus de Masoch, já tinha havido a Poesia 61 e afirmava-se já a Poesia Experimental, a cujo grupo eu pertencia e que se demarcava claramente do Surrealismo, mas havia ainda um forte clima de subversão surrealizante, em que a tendência nacional para o escarneo-e-mal-dizer se revia, estimulando um discurso de pendor mais ou menos anarquista, carregado de subentendidos e alusões de todo o tipo, que incitava à insubordinação ao mesmo tempo que dava lugar a um gozo cheio de malícia.
A acção de Fernando Ribeiro de Mello, ilustrativa do clima social em que surgiu, representava também coragem, originalidade e capacidade de intervir criativamente numa sociedade dominada pelo marasmo e oprimida pela bruta mão da censura. E se bem que Fernando Ribeiro de Mello tivesse posteriormente incluído na sua programação obras de carácter sério e até clássicos, como a História Trágico-Marítima, a Arte de Furtar e a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, a imagem que dele porventura se conservará é a do editor um pouco louco que pôs em prática um programa de trabalho inovador em que empenhou toda a sua vida.
As circunstâncias desta edição portuguesa da Vénus de Masoch, passados quase 30 anos, começam a ter interesse histórico.
Quando Fernando Ribeiro de Mello me pediu para fazer a tradução, acedi com prazer, pois eu estava em sintonia com o espírito transgressor da sua actividade editorial. Diverti-me imenso a traduzir e a colaborar nos aspectos editoriais para que fui chamada.
Júlio Moreira, jovem arquitecto paisagista e escritor ligado ao Surrealismo-Abjeccionismo, foi convidado a fazer o prefácio. O gráfico foi o arquitecto António Sena da Silva, grande amador de fotografia, que também foi o autor das ilustrações que tanto enriqueceram a edição. Nessas ilustrações, os figurantes eram: um empregado do armazém de Fernando Ribeiro de Mello e a mulher da limpeza, uma atraente morena. A caracterização e a encenação estiveram a cargo do pintor João Vieira, que se encarregou também de arranjar adereços. A cadeira foi emprestada por Natália Correia. O cenário era simplesmente um canto do armazém onde Fernando Ribeiro de Mello guardava os livros que editava.
Não assisti à sessão de fotografia nem fui eu quem seleccionou as fotos para as ilustrações, que nitidamente obedeciam a um plano, mas fui eu que escolhi as legendas, aspecto importante, uma vez que as fotos correspondem a diversos passos da narrativa que era necessário identificar correctamente.
Pelo seu estilo saborosamente ingénuo, as ilustrações incluídas nesta edição contribuíram para acentuar o carácter kitsch e transgressor da obra, tornando-se um chamariz irresistível para o público.
Quanto à capa, fui eu que escolhi a gravura, que representa uma Vénus de Ticiano a que no texto de Masoch se faz referência, mas não fui eu quem fez a maquette. Estilisticamente, a gravura da capa entrava em conflito com as ilustrações no interior do texto, mas infelizmente não pudemos ter acesso à outra Vénus que Masoch descreve e que provavelmente só existiu na sua imaginação – uma bela mulher de opulenta cabeleira, deitada nua sobre um sofá coberto de peles de zibelina, brincando despreocupadamente com um chicote e tendo a seus pés um homem humildemente deitado como um escravo, como um cão.
A figura que Masoch elegeu para heroína desta novela, é característica duma época em que estava em moda um certo tipo de aristocrata eslava, tirânica e caprichosa, de que Catarina da Rússia foi o epítome, dando origem a um paradigma que faria fortuna até à primeira metade do nosso século.
Quando dei o título de Vénus de Kazabaïka a esta minha tradução não foi só pela dificuldade de traduzir literalmente o título original – Vénus im Pelz –; foi também porque tive em mente as características étnicas da obra. A kazabaïka, que é uma pequena jaqueta de veludo guarnecida a pele, usada pelas mulheres eslavas, desempenha um papel importante nesta narrativa, quer nas recordações da adolescência de Séverine quer nas intervenções erótico-punitivas de Wanda, fazendo parte integrante do contrato celebrado entre os dois amantes. A kazabaïka de Wanda, segundo nos dizem no texto, era debruada de arminho e fazendo parte do seu arsenal de sedução, tinha um valor fetichista determinante para Séverine.
O universo sensual de Wanda e Séverine assenta num luxuoso ambiente de alcova em que as preciosas peles de certos animais desempenham um papel de estimulante sexual, pela suavidade do seu toque e pelo calor que proporcionam, aspecto que no texto se refere como importante.
Quanto ao azorrague, trata-se de um kantschuck, que nos dizem ser uma espécie de longo chicote de cabo curto, como o que o próprio Séverine possuía e que irresistivelmente nos recorda o chicote do domador de feras.
Todos estes elementos se tornaram posteriormente adereços obrigatórios no cenário erótico sadomasoquista, e como tal, nas ilustrações que foram inseridas na tradução, também surgem representados, à sua maneira.
O comportamento sádico da mulher que caracteriza esta Vénus de Masoch, para além dos aspectos étnicos já referidos, tem uma longa história cultural, remontando claramente a Circe e a Messalina e ao modelo da belle dame sans mercy, paradigma cortês da femme fatale que se prolonga até à vamp cinematográfica.
Os grupos feministas da actualidade poderão fazer desta novela, e em particular da figura de Wanda, outra leitura, vendo nela uma espécie de revanche sobre o machismo tradicional, mas a verdade é que, nesta novela, a vítima voluntária e feliz é um homem, um masoquista que se deleita ao ser cruelmente tratado e flagelado por uma mulher. Verdade é também que a história cultural nos ensina que o predominante papel de vítima que a mulher tem desempenhado ao longo dos tempos na sua relação com o homem, nem sempre terá sido tão desprovido de prazer como se julga, arrastando consigo, para além do imenso deleite da entrega, a ufania do martírio.
Sadistas e masoquistas, portanto, necessitam-se mutuamente, não podendo existir uns sem os outros. Essa é a lição que a história e o quotidiano nos ensinam, e como Masoch nos diz no final desta novela: quem se deixa chicotear, merece-o."

Lisboa, Maio de 1993
Ana Hatherly

Agradecimentos do Afrodite a Rui Almeida.