Monday, September 10, 2007

O Vinho e a Lira – recensão crítica de Liberto Cruz



Texto publicado no Jornal de Letras e Artes de 25 de Maio de 1966:

Um livro de poesia!

Malheur au poete si son vers fait la petite bouche! Victor Hugo

Fernando Ribeiro de Mello, jovem editor na idade e no ofício poderá vir a preencher uma lacuna no plano editorial português. Depois de alguns arrojados lançamentos eis que nos oferece agora uma colecção de poesia – Sagir – cujo primeiro número é constituído por um livro de Natália Correia: O Vinho e a Lira. Poeta e ensaísta, autora de Comunicação é uma das vozes mais firmes da poesia portuguesa contemporânea. O presente volume é mais uma achega para a importância cada vez mais nítida que a poesia feminina vem tendo entre nós.
Há tempos relendo o celebérrimo Préface de Cromuell, de Victor Hugo, fixei a seguinte frase: Malheur au poete si son vers fait la petite bouche!
Mal sabia eu que quase um século depois estas palavras de Mestre Hugo se poderiam aplicar inteiramente a um livro de Natália Correia, isto é, que um poeta dos nossos dias viria uma vez mais dar razão ao festejado autor de La Légende des Siécles. Na verdade todos os poemas de O Vinho e a Lira parecem querer fugir a essa desgraça onde o verso fait la petit bouch! E diga-se abertamente que o conseguem e lembram a cada momento. Cada poema, cada verso sabe de cor esse aviso de Victor Hugo e mercê duma força intrínseca que os anima e projecta, ganham uma intensidade dramática, uma coragem impressionante onde o amor e a morte, a vida e o sonho se entrechocam e saltam desesperadamente, plenos de avidez e delírio. É então altura de a lira cantar com paixão e raiva com verdade e fúria embriagado-se lucidamente para que o seu canto tenha tanto de ousado como de fantástico, e tanto de real como de inventado.
Apontada muitas vezes como surrealista ela própria teve oportunidade, não há muito tempo, de escrever as seguintes palavras: «Frequentemente arrumada pela crítica no cacifo surrealista, tem a autora a esclarecer que, se semelhante arrumo quadra à comodidade dos nossos fazedores de génios, de forma alguma define a sua poesia.»
Com efeito o volume agora publicado por Natália Correia leva-nos a concluir que estamos perante um poeta para quem a realidade assume uma importância que até aqui passava despercebida aos menos atentos. Não só o poema acima transcrito como outros de O Vinho e a Lira

Salvem-se ao menos as unhas
a máquina de registar
a sangue o número da besta
porque eu sou aquele que virá
com sete estrelas na dextra
mostram-nos que a autora está poeticamente empenhada numa realidade que é no fim de contas o cosmos e a justificação do próprio poeta. Atento e integrado num real, que procura desvendar para uma melhor actuação e deslumbramento da poesia, o poeta não hesita em proclamar:(Pág. 100)

Lúcido, desiludido e crente, desesperado e exacto, ei-lo que se levanta para dizer com a tranquilidade de quem habita a vida e a entende:

Todavia é o fim
o suicídio de um avião
todos os dias acontece
o que só prova que o romantismo
felizmente prevalece
(Pág. 98)

Não se pense no entanto que o realismo poético de Natália a limita ou inibe se seguir outros caminhos. Livre, poeticamente livre, encaminha constantemente para uma recriação onde a palavra e a imagem têm uma função secreta e inefável a desempenhar. É certo que este livro perdeu (infelizmente quanto a mim) aquele tom misterioso repleto de feitiço e encantamento com que Natália Correia embebia os seus versos. Mas ganhou por outro lado uma humanidade, uma paixão pelas gentes e pelas coisas que também não pode deixar de me impressionar. E o quer me agrada sobremaneira é ver a distância, a coragem e o entusiasmo com que sabe fugir ao imediato, ao banal, ao quotidiano, no pior sentido da palavra. Acima de tudo poeta e artista da palavra e da forma (genuinamente portuguesa no modo como utiliza a redondilha mais europeia pela liberdade que lhe imprime) Natália Correia mostra-nos a cada passo ser a realidade um poderoso e extraordinário colaborador da magia. Para a autora a realidade não é um fim único mas um meio capaz de ajudar a expressar a poesia que a invade.
Um caminho onde Natália Correia atinge uma altura que neste momento não encontro na actual poesia portuguesa feminina é nos poemas de amor. Abandonando ouropéis e eufemismos, atitudes passivamente líricas e resignadas mergulha numa aragem renovada de liberdade e erotismo, de feminilidade e ânsia, de posse e frustração.
Actuando decididamente ao contrário do que é comum na poesia feminina (malheur au poete si son vers fait la petite bouche!) os poemas de amor surgem-nos contudo carregados de paixão, repassados de uma frenética e corajosa sinceridade onde a mulher louva e canta a «arte de ser amada». E fá-lo num tom maior, activo e actuante, banindo a típica e corrente imagem do amado que se contempla e pelo qual se suspira, para se lançar num plano real e imaginado onde o objecto e a ideia se enlaçam e exaltam.
Servindo-se constantemente do vocábulo concreto, objectivo, directo, chamando às coisas os nomes que elas têm, a sua linguagem atinge todavia um clima de irrealidade, um tonus intemporal, mercê da beleza e da técnica com que sabe manejar e ajustar as palavras. Jamais condescendendo com o malabarismo susceptível de provocar um efeito simpático, o rodriguinho capaz de entusiasmar capelinhas, ei-la que se volta para a forma das origens da nossa poesia para melhor poder falar no nosso tempo – e desassombradamente – duma temática tão antiga como actual, tão moderna como renovada e constante.
Atente-se ainda no ritmo, no «crescendo» do poema, nas pausas, na parente dispersão do volume, no significante e no significado de O Vinho e a Lira e concluiremos que estamos perante o mais belo livro de poesia publicado nesta primeira metade de 1966.
Na última crónica publicada neste jornal apelámos para a Editorial Presença para que conferisse à sua colecção de poesia um melhor nível nos poetas escolhidos. Hoje só nos resta pedir a Fernando Ribeiro de Mello que saiba (e possa manter) a qualidade da sua colecção Sagir tão fulgurantemente iniciada com o livro O Vinho e a Lira de Natália Correia.
Publicando o seu melhor livro de poesia, pela maturidade do Verbo, a expressividade dos versos, a beleza e a ousadia da forma e da temática – sempre tão indisciplinadamente certos – Natália Correia obtêm na poesia portuguesa, e nomeadamente na feminina, um lugar de relevo cuja modernidade tem o sabor clássico das cosas antigas e a loucura inquietante das vindouras.