Monday, October 08, 2007

Prefácio com hidras

Leopold von Sacher Masoch


Fragmentos do prefácio de Júlio Moreira, intitulado, Nós e Masoch, para a edição de A Vénus de Kazabaϊka:

Nós

Recordam-se por certo de ter estudado a anatomia e o habitat das hidras.

Os animais de jardim zoológico impressionam-nos muito mais que os animais «didácticos», cuja violência se limita em geral às descrições de compêndio. Autores tão respeitáveis como Borges chegam a considerar que uma das prováveis origens para as neuroses, tão comuns no nosso tempo, são as visitas que todos teremos feitos, em tenras idades, aos jardins zoológicos. Sem contestar a importância do impacto com a avestruz, a girafa ou o crocodilo, que bastam para romper os quadros da nossa experiência anterior, tenho de reconhecer o primado da hidra no bestiário da minha infância.

Essa fascinação do humilde animal que habita os tanques dos jardins onde corremos atrás do arco ou jogamos à cabra-cega, tornou-se mais tarde, na idade cartesiana que todos nós atravessamos, e por certo antecede, no plano da experiência individual, o próprio filósofo que lhe deu o nome, um objecto de particular inquietação.

Com ou sem fundamento, acabei por explicar a fascinação da hidra pela invulgar característica que apresenta de funcionar com toda a «sua» plenitude tanto do direito como do avesso.

Essa explicação, se foi suficiente para me tranquilizar no período seguinte da minha evolução (dum feroz humanismo canibalesco), foi pela súbita projecção duma aparência humana que realizei nas vulgares hidras dos tanques.

Tudo se passou como se, tendo focado num plano de atenção mais próximo numa hidra comum, tivesse ultrapassado os preceitos de escala e de forma que condicionam a visão convencional do mundo, e me encontrasse perante uma maravilhosa criatura cuja silhueta, movimento e significado ontológico correspondessem em tudo a uma casual amostragem dos meus semelhantes que frequentam os estádios desportivos ou se pasmam perante a magia da televisão.

Muitas vezes, posteriormente, ao reconhecer-me pela manhã, no espelho embaciado da casa de banho, me identifiquei com as hidras que desde sempre me tinham fascinado. Assim me salvei, aliás, de toda e qualquer acusação de aristocracia que pudesse vir a ser-me dirigida.

INTROSPECÇÃO

O que distingue a hidra dos outros animais é a perfeita identidade do interior e do exterior.

Experimentemos virar uma hidra do avesso: sem a menor perturbação ela continua a agitar a verde corola de flagelos, a dobrar-se em passos sucessivos de dança.

É difícil evitar as antropomorfizações – que dominam todas as nossas concepções do universo, as mais abstractas – quando nos debruçamos sobre a existência privada das hidras.

Além da hidra, o homem será o único animal da criação cuja interioridade se confunde e identifica exactamente com o mundo exterior. Mas tal como sucede com as hidras, o virar-se do avesso como um dedo de luva, não é uma situação natural: alguém terá de cometer o atentado, desensimesmar o corpo até que as noções de interior e exterior se tornem meros dados relativos ao local e ao momento.

Quem sabe, entretanto já no plano arbitrário das conjectures, se no maravilhoso período da adolescência, as hidras não se entregam a uma apaixonada introspecção, se não desejam acima de tudo «encontrar-se»?

A FLAGELAÇÃO

Um facto único, e aparentemente secundário, distingue homens e hidras: a flagelação.

A anatomia bastará talvez para explicá-lo: a hidra é provida de flagelos, ao passo que o homem falho desse poderoso elemento anatómico, terá de procurá-lo fora de si.

A flagelação constitui na verdade o meio mais corrente para realizar esse ideal complexo e vago, que precipitadamente, talvez, defini como «encontrar-se», de acordo com a terminologia adoptada em certos níveis de evolução intelectual.

Tomada como meio de ascenção, desde a existência lodosa dos impulsos até ao luminoso nível da consciência, a flagelação chega frequentemente a ser tomada, em si, como um ponto de chegada, uma maneira de estar no mundo, e daí a tornar-se um esquema ideal de existência.

Não falemos já da flagelação praticada como meio de ascese pelos anacoretas e por e por todos aqueles que tomam pelo aventuroso caminho do martírio voluntário, ao encontro da própria imagem ampliada pela ambição e pelo medo da morte. Esse caso limite toma nos nossos dias aspectos mais amáveis, continuando o azorrague e os e os cíclicos a actuar apenas pelo valor simbólico de que se revestem, representados nas imagens dos santos que vamos venerando.

A evolução dos costumes, libertando-nos das penitências, procuradas ou impostas, privou-nos também das alegrias da flagelação.

Hoje, a sobrevivência desse rigoroso costume, tendo-se multiplicado numa profusão de formas por vezes difíceis de identificar, manifesta-se sobretudo na prática do acto sexual.

(...)

NEUROSE

A medição entre o impulso e o acto constitui uma verdadeira flagelação, logo, um meio de ascese. Mas uma verdadeira ascese conduz a um plano de realização superior, como seja a fusão final do indivíduo no espírito universal, ou, mais modestamente, ao «encontrar-se», que tão frequentemente se confunde com ter automóvel e frigorífico.

Para o comum dos mortais, encontrar-se, é mesmo assim um luxo raro, que rapidamente se rejeita, por desistência.

Negado o impulso original, incapaz de guindar-se às realizações superiores, o indivíduo comum, normal, fica sujeito à invasão do mundo exterior, è compensação fácil dos espectáculos baratos que o dia a dia nos oferece.

Daí a identificação ontológica com a hidra, a reversibilidade do interior e exterior.

A violência que essa situação implica, por melhor que seja a sua aceitação, vai deixando que mais tarde se tornem sensíveis, alteram o comportamento, anulam a pureza original dos reflexos.

(...)