Friday, May 02, 2008

Pachecus Scriba

Baptista-Bastos no suplemento «Letras e Artes» do «Diário Popular» de 22 de Dezembro de 1977, a propósito de Luiz Pacheco e a edição de «Textos Malditos»:

Pachecus Scriba

Pode-se gostar ou não gostar de Pacheco; pode-se estimar ou odiar Pacheco – não se pode é ignorá-lo. Este sátiro de três ao vintém, libertino de extracção caseira, redutor da vulgaridade e da grosseira, alcoólico, intriguista maior, retirante de todos os sítios, litera do séc. XIX ressurrecto em truculência, saltimbanco, incongruente, inconsequente – fez da literatura um meio de vida e desta um universo próprio. Luiz Pacheco é meu amigo, mas eu não acredito no diabo. Faço uma perífrase do conceito que Claude Roy aplicou a Roger Vailland e acrescento que a amizade entre mim e o Pacheco tem sido edificada sem precauções de qualquer espécie: sei que, um dia destes, se lhe der na mona, ele dirá pessimamente de mim soltando casquinadas intermitentes, a sua forma de escárnio e mal dizer. Vai para vint´anos que decilitramos em conjunto, na prática do desporto líquido que liga irmãos de critérios diferentes, oriundos de uma família que se entende por gestos, sinais e absurdos. Por três ou quatro vezes escrevi um par de disparates sobre Luiz Pacheco e os seus textos; por três ou quatro vezes, Luiz Pacheco escreveu um par de disparates sobre mim e os meus textos. Nunca ficámos quites: fomos à bebida e passamos adiante. Agora, Fernando Ribeiro de Mello ataca em dó maior um livro superior deste companheiro inconformado: «Textos Malditos». È proibido não o ler. Ai está a degradação de um certo viver quotidiano; a lucidez militante de uma criatura que recusa os prestígios fáceis; as tonteiras de uma prosa singularmente ladina e asseada, quero dizer: viva e sem enxúndia; o traço de união entre a miséria e a glória. E avanço: na grandeza e na desgraça só encontro paralelo em Gomes Leal, sabem quem é? Luiz Pacheco é a antítese do caligrafismo, seja: bate-se contra a frase padreca de uma literatura de santões e de arcanjos de asa branda. A estória sem historinha, a dilaceração sem uma lágrima, e três obras-primas, «O libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor», «Porto-Lisboa, apedir esmola» e «Os doutores, a salvação e o menino». Não vai mais, no instante. Como nas feiras antigas, o grito apelativo é sempre o mesmo: «É entrar! É entrar!» Pachecus, scriba, não oferece fruta bichada a ninguém do distrito. Sob palavra o digo, e assino

BAPTISTA-BASTOS