Saturday, July 29, 2006

Acerca da edição de 1966 da Filosofia na Alcova - Parte III

Bem... Mourão-Ferreira não contestava o facto de Sade ser um grande escritor; mais ainda: “uma personalidade-padrão, uma figura emblemática, uma espécie de farol”. Tinha, sim, um estilo de “chateza confrangedora, estereotipado e uniforme, tecido de constantes ´clichés´, sem o risco pessoal daqueles pormenores concretos e daquelas transposições metafóricas que dão relevo e surpresa à linguagem”. Por outro lado, o seu mundo romanesco revelava-se “bastante esquemático, regido por leis quase mecânicas”; e, quanto à estrutura, não havia obra sua que não ficasse “pelo desequilíbrio das diversas partes”. Sim, era verdade que Bertrand d´Astorg o considerava autor essencialmente contemporâneo. E que quem sofrera “a experiência de Dachau e de Auschwitz”, quem andava ainda a sofrer “a Oeste ou a Leste da Cortina de Ferro a experiência de outros campos mais discretos ou por enquanto menos famigerados”, quem conhecesse pelo menos “o relato desses horrores” ou simplesmente vivesse no tempo em que eles decorriam, encontrava-se “em situação tristemente privilegiada para melhor compreender o universo de Sade”. Sade contemporâneo? Não só, esclarecia Mourão-Ferreira recorrendo a Klossowski: “meu próximo”. Apesar de tudo isto era verdade, porém, que lhe não tinha amor. E sobretudo não perdoava que tivesse o condão, “deveras vexatório”, de lhe provocar “muito bons sentimentos”. Nenhuma palavra, felizmente, sobre o facto de ser ou não ser oportuno publicar em português um texto de linguagem crua e com ideias em batalha contra todas as regras da moral estabelecida.
(continua)