Saturday, March 03, 2007

Excertos do Prefácio à Antologia do Humor Português


Já André Breton chamou a atenção para o facto de estarem mais ou menos condenados a perecer rapidamente todos os sistemas e obras isentos de humor: é que, dados os condicionalismos do inferno e da sensibilidade especificamente modernos, o humor é a única forma elevada de comunicação (a mais rara e difícil) e o único meio de resistir eficazmente ao temporal da loucura que sobre nós desaba assim que saímos à rua. Pára-raios, tinta de chocos, «veneno para entornar nos olhos do gigantes»(1) ou arte de desorganizar o arbitrariamente organizado, o humor é, na admirável definição de Léon Pierre-Quint(2), uma revolta superior do espírito. Na hierarquia das faculdades humanas, o sentido de humor garante a quem o possui integralmente o poder de insubmissão, a capacidade de recusar em absoluto todos os valores e princípios situados para além dos limites extremos do entendimento, na zona do dogma e da deificação irracional. Ao assegurar a invulnerabilidade da mais íntima humanidade do homem, ao rejeitar as experiências aniquilantes e os sofrimentos impostos ao indivíduo pela realidade exterior, ao preservar o espírito dos traumatismos intelectuais e efectivos que tendem a retirar ao ego a plena liberdade de decisão sobre o seu próprio destino, o humor na sua expressão mais elevada significa o triunfo da liberdade sobre a necessidade, dos poderes do espírito sobre as condições da vida. Neste plano, o humor comporta sempre um elemento sublime, apto a libertar e a exaltar a razão e o coração, elemento que tem tudo a ver -, não só com a revolta contra o espectáculo do mundo e das suas instituições, com o repúdio ferozmente sarcástico dos artifícios caducos do sentimentalismo burguês e das manias delirantes e de perseguição que constituem o arsenal do bom-senso, ou com a desmontagem minuciosa dos mecanismos de exploração, que só funcionam quando lubrificados com os santos óleos da metafísica e da razão de Estado -, mas também com a transformação da vida, com a esperança de descobrir um sentido menos precário às razões de viver.

Aqui chegados, resta-nos mencionar o humor, no ponto de cruzamento do desejo sem meios e dos meios sem desejo, como suprema lucidez, arte de denunciar e perseguir até aos seus covis mais recônditos os absurdos de uma situação irrisória e injusta em todos os planos, de uma lei fundamentada no dinheiro, no horror ao corpo, na baixeza obrigatória do espírito, no incessante atentado ao amor, a todos os poderes de afirmação e criação do homem livre, do homem que não cabe nos esquemas daqueles que ao comprarem a sua força de trabalho pretendem comprá-lo todo, em corpo, e alma.

A sorrir ou a ranger os dentes, o humor destrói a visão convencional do mundo, duvida de todas as definições lapidares, corrige todas as teorias definitivas, é, em suma, contra a esclerose e o imobilismo triunfantes, o melhor meio de conquistar e manter na sua forma mais pura a independência e a liberdade.

Organizar antologias de humor (literário) é incorrer naturalmente numa tentativa de historiar o que entre nós não passa de tendência dispersa e quantas vezes rara. Mesmo assim, embora com discutível critério, seleccionámos as páginas que se seguem, partindo dos cancioneiros e rematando nos dias de hoje. De muitos dos autores registámos fragmentos de obras, doutros demos trechos por inteiro. Sempre que foi caso disso, preferimos não truncar os textos, sacrificando à vasta representação de autores que reputámos essenciais outros cuja omissão chocará o leitor mais exigente (Chiado, Vieira, Guilherme d´Azevedo, Júlio Dinis, Cardoso Pires, etc.), mas que os limites deste volume, mais dilatados do que em principio pretendíamos, já não comportavam. É evidente que uma antologia deverá ter a sua economia própria, inserir ao autores mais representativos de determinada época ou movimento, aspirar a uma síntese. Tudo isto foi nossa intenção conseguir. Não pretendemos ter uma ideia original neste assunto, nem tão-pouco esgotá-lo: quisemos apenas não trair o filão mais importante do humor português, que é representado na nossa literatura pela sátira.

Ernesto Sampaio
Lisboa, Novembro de 1969

1 – Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano, Mário Cesariny de Vasconcelos
2 – Le comte de Lautréamont et Dieu