Alexandre Pinheiro Torres escreveu sobre O Libertino

Luiz Pacheco ou o Burlador de Braga «magister artium eroticarum»
Com um inteligente e claro posfácio de Júlio Moreira apareceu recentemente um novo original de Luiz Pacheco, o celebrado autor de Crítica de Circunstância, livro que mercê da compreensão de toda a gente já vai na décima quinta edição.
Chama-se o novo original O Libertino passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor. Sabe-se que foi disputado por várias editoras, mas o certo é que a Edição de Autor venceu mais uma vez. Desta forma é que o livro de autor português não se tornará «mercadoria» nem que o matem, mau grado a pesporrência de quem bem ajuda que tal situação de eternize, para bem dos escritores de meia tigela importados do estrangeiro e que, depois de vertidos no calão nacional, são propagandeados em caros anúncios com a melhor adjectivação que a casa gasta.
Poderá acaso o Leitor Distraído imaginar um Libertino a passear por Braga? Pode, porque podemos imaginá-lo a passear por onde lhe dê a real gana. Mas Braga – objectar-se-á – epitoma o «Establishment», e, este, embora adepto praticante convicto dos ballets rose, repele a concepção libertina segundo a qual o amor é um facto da Natureza. Apesar disso (e por isso mesmo) o Libertino vai tentar fazer a sua colheita numa coutada hostil, missionário da Verdade libertina junto do indigenato incréu, empurrado missionariamente pela premência do seu martírio, da sua glória e santificação.
Interessa-nos saber como o Libertino se descreve como um anti-D. Juan. Não é belo («com as 17 ou mais dioptrias e o estigmatismo e as lentes e as clarabóias do verde, que olhar será o meu?», interroga-se consciente do seu aspecto físico «desgraçado»), não tem um tostão («um bom Libertino não precisa de dinheiro», filosofa), e anda mal vestido, miserável («blusão de nylon preto, calças rotas no rabo, sapatos rotíssimos nas solas e sujos de poeira por cima, uma coisa entre o tedibói e o vagabundo», descreve-se).
O verdadeiro D. Juan, o Burlador de Sevilha, inventado por Tirso de Molina, esse é másculo e sabe usar da palavra. A magia verbal é com ele, embora os seus processos de sedução não deixem de não ser toscos, faz-se passar pelo noivo, promete casamento, etc., sobretudo não anda com lunetas de dezassete dioptrias nem exibe fundilhos. O Burlador de Braga está, assim, mais próximo Santo Genet, canonizado por Jean Paul-Sartre, por se tratar de uma figura que, pelo seu funambolismo charlatonesco vai tornar maravilhosos (no sentido de fontes de maravilha, surpresa, prodígio, de coisas extraordinárias e às vezes incompreensiveis) elementos que, na aparência, são ignóbeis.
O Burlador de Braga não vai ser, na verdade, como o seu antepassado espanhol. Este, como «gran garañon» de Espanha, tenta sempre suplantar as figuras que substitui. O «bracarense» não tenta suplantar nem substituir seja quem for. E, sobretudo (isto é fundamental), não promete casamento. Promete apenas prazer. Como processo de sedução utiliza os seus olhares de megatoneladas (por definição, sem eficácia). A «magia verbal» reduz-se a, nele, a um jogo simples e ingénuo de perguntas e respostas, com sugestões eróticas excessivamente vagas para a mentalidade das lolitas (?) minhotas. O Burlador de Braga esqueceu-se que a pseudovirgem de Nabukov é um produto sofisticado de um meio anti-Brgal (para usar o adjectivo de Luiz Pacheco), e que nem sequer é o H. H. que seduz ou que burla seja quem for.
A Penísula Ibérica tem de usar sempre de extremo cuidado quando tentar as comparações anglo-sáxonicas.
O auto-retaro do Libertino constitui uma ficha que serve para o colocarmos no mundo da humilhação. Descobre a Super-Lolita, e outras minilolitas de Entre Douro e Minho, mas a sua vagabundagem espiritual não lhe permite a persistência donjuanesca até as encurralar. Algumas não chegam mesmo a adivinhar que o Burlador de Braga se interessou efemeramente por elas. A admiração é à distância, não chega a haver qualquer sedução, e as suas manobras de ataque são escandalosamente ineficazes. O resultado prático é uma humilhação permanente, uma auto-flagelação, uma procura inútil do pecado, uma tentativa sempre frustrada de santificação pelo Mal. Nisto, a personagem afasta-se de Jean Genet, não chega a atingi-la nas suas ambições.
Tratar-se-á (como dirá o próprio autor) de «luxúria mental» apenas, das actividades inconsequentes e sem consequências práticas de um «Libertino dos domingos minhotos de Braga». O Libertino exclama desiludido no fim de uma jornada afinal inocente. «Mas que vontade de ter pecado. De pecar. Como assim: de viver.»
A EXEMPLARIDADE NEGATIVA
Mas em Braga é mais fácil fazer o Bem do que fazer o mal. Fazer o Mal é, às vezes, um tanto difícil. Pelo menos o Libertino não pode fazê-lo. Até porque o Mal, a ser feito em Braga, terá de ser feito de acordo com as regras antilibertinas do Establishment de que a cidade minhota á indispensável e glorioso bastião.
Augusto da Costa Dias foi quem, entre nós, e no domínio do ensaio, chamou pela primeira vez a atenção para esta inversão de valores. Ela é focada no estudo com que antecedeu a publicação do inédito de Almeida Garret, «O Roubo das Sabinas». Os caminhos da virtude são amenos e suaves, enquanto os do pecado não são. «A virtude nem é difícil nem é árdua», diz Garret, de quem Augusto da Costa Dias cita ainda estes versos:
Não, filho, só no crime há dor e angústia,
Só delícia e prazer há na virtude».
Aliás se bem interpreto é este o tópico profundo de Sartre ao interpretar Genet. Daqui se chega ao conceito de pecado como martírio, à ideia (sacrílega?) de que há uma santificação a que se pode chegar no Reino do Mal (como no Reino do Bem), daqui se chega à glorificação do mal, no sentido explicado perlo autor da Notre Dame des Fleurs: «há uma glória segregada pelos folhos da infelicidade».
Há, pois, uma santidade pela execração. Sartre chama a atenção em Saint Genet, Comédien et Martyr para o impulso que leva certos homens a procurar o desprezo e a buscar o julgamento dos outros homens. Ao lado da exemplaridade negativa. Em Jean Genet, e segundo a análise sartreana, há uma vontade de identificação com todos os pecados do mundo. Como ponto culminante desta Ética do Mal temos a ideia de que ela (da mesma forma que a Ética do Bem) também implica uma Graça.
A DEFESA DA EXEMPLARIDADE POSITIVA PELO CASTIGO
Tirso de Molina tinha de castigar o terrível D. Juan. O Burlador de Sevilha é, por isso, e segundo a moral oficial, uma obra de tendência morigeradora. Deus intervém sobrenaturalmente na figura do Convidado de Pedra e D. Juan vai par as profundas do Inferno. Mozart não pretendeu melhor solução. Não é que o sedutor sevilhano fosse, todavia, um descrente. O Leitor distraído sabe que, perante e iminência do castigo, pede um sacerdote, a fim de obter um perdão à tangente, oportunidade de redenção que lhe é negada. Assim é castigado. O nosso Guerra Junqueiro não deixa de não ter tido um espírito menos morigerador. À sua mentalidade, a este respeito pudibunda, não lhe soaria bem o triunfo do Libertino. Falar de um D. Juan, de um sedutor, é procurar-lhe simultaneamente uma punição qualquer: a defesa da exemplaridade positiva.
O Burlador de Braga, ou seja, Luiz Pacheco, não deixa também de não ser perseguido pela hantise da penitência. O Libertino passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor, abre com a premonição da morte. Mas o que salva Luiz Pacheco de cair no cliché é a solução magistral para o problema do castigo. Falhada a peregrinação erótica, esquivas ou inatingíveis as lolitas, O Libertino nega-se como tal, confessa a sua queda, a sua demissão a sua derrota.
O «esplendor» que ele passeia por Braga é, portanto, um esplendor negativo, porque em Braga toda e qualquer tentativa de contágio libertino tem de acabar em fracasso. A cidade minhota é, pois, emblemática do Calvário do Libertino, não só a coutada inacessível à caçada, como ao espírito, que a dita. O Calvário é representativo da reacção conservadora a uma certa mentalidade revolucionária ou à doutrinação que dela deriva. Engloba, na sua mitologia, uma certa forma de castigo ditado pelos acusadores. O Convidado de Pedra de Tirso de Molina simboliza esse júri silencioso, mas tremendamente eficaz, que é a moral do Establishment. Guerra Junqueiro, em A Morte de D. João, soube (apesar da Velhice do Padre Eterno) ser dela um perfeito porta-voz, em nome da piedade humanitarista pelas vítimas dos burladores.
Mas no livro de Luiz Pacheco o Libertino não pode ser englobado no sector dos acusados. Nisto é que a personagem se opõe diametralmente a D. Juan, e é mesmo um anti-D. Juan. A argúcia de Pacheco foi ver esta implicação fundamental, ao definir a personagem por meio de uma caraterologia que é, detalhe por detalhe, uma «teologia negativa» relativamente à personagem tradicional. É certo que esta degradação do sedutor já tem antecedentes na literatura portuguesa. Estou a lembrar-me da forma como Gomes Leal a retrata nas Claridades do Sul. Mas Luiz Pacheco transcende obviamente estes planos, ligando o seu Libertino a outra genealogia. Poder-se-á mesmo dizer que a progénie do seu Libertino nada tem a ver com qualquer tradição. Pelo menos com a nossa tradição.
Mas não me interessando deslindar este aspecto há que afirmar que Luiz Pacheco coloca, com argúcia, a sua personagem no sector dos acusadores da sociedade. Os pecadores contra a instituição da heterosexualidade, como Gide, não deixam, a cada momento azado, de procurar a justificação. No fundo sentem-se sempre, e profundamente, no banco dos réus. Corydon ou Si le grain ne meurt são discursos de defesa contra uma Sociedade de dedo apontado. Gide está no limiar de Genet. E Genet já acusa, obviamente.
Seria injustiça, todavia, dizer que Luiz Pacheco é um mini-Genet ou um Libertino de bolso de colete. Bastaria a profunda genuinidade de O Libertino passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor, o seu carácter, a sua atmosfera tão portuguesa, para demitirmos o juízo derrogativo. Até porque Luiz Pacheco escolhe para oferecer-nos a face em que o Libertino não se realiza, em que tudo rigorosamente lha falha, e em que o libertinismo se limita a uma nem sempre muito atrevida aventura mental. Não é este o caso de Genet, se bem interpreto.
O casanovismo frustrado deste Libertino leva-o de decepção em decepção O que lhe interessa é pecar, pecar pela carne, pecar é viver, e tudo o mais é uma forma de morte. A realidade última do homem, o seu mais profundo estrato, aquilo que mais susceptível é de aprofundar as zonas obscuras da consciência, ou de tornar possível a pesquisa da autenticidade humana, a vida em estado puro (como foi moda dizer-se), tudo isso vai ser negado ao Libertino. A sua marcha através de Braga é, pois, uma auto-flagelação, um exercício de masochismo mental, porque a cidade minhota descobriu, e explora, as suas formas ersátzicas de vida, e estas têm um peso demasiado grande para que qualquer Libertino individualista as vença como um novo Cristo.
A MISÉRIA REABILITADA?
Uma implicação ideológica profunda é aquela segundo a qual se poderia dizer que este livro de Pacheco tenta a reabilitação de um certo estado de miséria. A poetização da miséria. A miséria como fonte de maravilha. Mas em todas as coisas aparentemente negativas pode haver uma faceta positiva. É que, com efeito, este poeta maldito que nos aparece no livro de Pacheco (e não interessa que nos asseverem que é um rigoroso alter ego do autor) assume a miséria como recusa militante do Establishment, não acreditando que este possa ser destruído, por exemplo, pelas atitudes de V. S., personagem indirecta da narrativa, mas importantes pelo seu simbolismo. O negativismo romântico do Libertino leva-o, como se vê a um corte com todas as formas organizadas de resistência. Para ele só há uma forma de dignidade: é a de recusar tudo.
É esta atitude heróica, que leva à miséria e ignomínia, através de um Calvário de auto-aniquilação, o que profundamente o livro de Luiz Pacheco simbolilza, postula e retrata.
Que para além das implicações diversas, mais ou menos especulativas, e com a feição da ideologia a que cada qual se agarra (ou finge), seja dito, porém, que O Libertino passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor é, pela novidade da linguagem, e pelo desassombro do depoimento, uma obra rigorosamente única da nossa moderna ficção.
Cardiff, Abril de 1970
Alexandre Pinheiro Torres
Com um inteligente e claro posfácio de Júlio Moreira apareceu recentemente um novo original de Luiz Pacheco, o celebrado autor de Crítica de Circunstância, livro que mercê da compreensão de toda a gente já vai na décima quinta edição.
Chama-se o novo original O Libertino passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor. Sabe-se que foi disputado por várias editoras, mas o certo é que a Edição de Autor venceu mais uma vez. Desta forma é que o livro de autor português não se tornará «mercadoria» nem que o matem, mau grado a pesporrência de quem bem ajuda que tal situação de eternize, para bem dos escritores de meia tigela importados do estrangeiro e que, depois de vertidos no calão nacional, são propagandeados em caros anúncios com a melhor adjectivação que a casa gasta.
Poderá acaso o Leitor Distraído imaginar um Libertino a passear por Braga? Pode, porque podemos imaginá-lo a passear por onde lhe dê a real gana. Mas Braga – objectar-se-á – epitoma o «Establishment», e, este, embora adepto praticante convicto dos ballets rose, repele a concepção libertina segundo a qual o amor é um facto da Natureza. Apesar disso (e por isso mesmo) o Libertino vai tentar fazer a sua colheita numa coutada hostil, missionário da Verdade libertina junto do indigenato incréu, empurrado missionariamente pela premência do seu martírio, da sua glória e santificação.
Interessa-nos saber como o Libertino se descreve como um anti-D. Juan. Não é belo («com as 17 ou mais dioptrias e o estigmatismo e as lentes e as clarabóias do verde, que olhar será o meu?», interroga-se consciente do seu aspecto físico «desgraçado»), não tem um tostão («um bom Libertino não precisa de dinheiro», filosofa), e anda mal vestido, miserável («blusão de nylon preto, calças rotas no rabo, sapatos rotíssimos nas solas e sujos de poeira por cima, uma coisa entre o tedibói e o vagabundo», descreve-se).
O verdadeiro D. Juan, o Burlador de Sevilha, inventado por Tirso de Molina, esse é másculo e sabe usar da palavra. A magia verbal é com ele, embora os seus processos de sedução não deixem de não ser toscos, faz-se passar pelo noivo, promete casamento, etc., sobretudo não anda com lunetas de dezassete dioptrias nem exibe fundilhos. O Burlador de Braga está, assim, mais próximo Santo Genet, canonizado por Jean Paul-Sartre, por se tratar de uma figura que, pelo seu funambolismo charlatonesco vai tornar maravilhosos (no sentido de fontes de maravilha, surpresa, prodígio, de coisas extraordinárias e às vezes incompreensiveis) elementos que, na aparência, são ignóbeis.
O Burlador de Braga não vai ser, na verdade, como o seu antepassado espanhol. Este, como «gran garañon» de Espanha, tenta sempre suplantar as figuras que substitui. O «bracarense» não tenta suplantar nem substituir seja quem for. E, sobretudo (isto é fundamental), não promete casamento. Promete apenas prazer. Como processo de sedução utiliza os seus olhares de megatoneladas (por definição, sem eficácia). A «magia verbal» reduz-se a, nele, a um jogo simples e ingénuo de perguntas e respostas, com sugestões eróticas excessivamente vagas para a mentalidade das lolitas (?) minhotas. O Burlador de Braga esqueceu-se que a pseudovirgem de Nabukov é um produto sofisticado de um meio anti-Brgal (para usar o adjectivo de Luiz Pacheco), e que nem sequer é o H. H. que seduz ou que burla seja quem for.
A Penísula Ibérica tem de usar sempre de extremo cuidado quando tentar as comparações anglo-sáxonicas.
O auto-retaro do Libertino constitui uma ficha que serve para o colocarmos no mundo da humilhação. Descobre a Super-Lolita, e outras minilolitas de Entre Douro e Minho, mas a sua vagabundagem espiritual não lhe permite a persistência donjuanesca até as encurralar. Algumas não chegam mesmo a adivinhar que o Burlador de Braga se interessou efemeramente por elas. A admiração é à distância, não chega a haver qualquer sedução, e as suas manobras de ataque são escandalosamente ineficazes. O resultado prático é uma humilhação permanente, uma auto-flagelação, uma procura inútil do pecado, uma tentativa sempre frustrada de santificação pelo Mal. Nisto, a personagem afasta-se de Jean Genet, não chega a atingi-la nas suas ambições.
Tratar-se-á (como dirá o próprio autor) de «luxúria mental» apenas, das actividades inconsequentes e sem consequências práticas de um «Libertino dos domingos minhotos de Braga». O Libertino exclama desiludido no fim de uma jornada afinal inocente. «Mas que vontade de ter pecado. De pecar. Como assim: de viver.»
A EXEMPLARIDADE NEGATIVA
Mas em Braga é mais fácil fazer o Bem do que fazer o mal. Fazer o Mal é, às vezes, um tanto difícil. Pelo menos o Libertino não pode fazê-lo. Até porque o Mal, a ser feito em Braga, terá de ser feito de acordo com as regras antilibertinas do Establishment de que a cidade minhota á indispensável e glorioso bastião.
Augusto da Costa Dias foi quem, entre nós, e no domínio do ensaio, chamou pela primeira vez a atenção para esta inversão de valores. Ela é focada no estudo com que antecedeu a publicação do inédito de Almeida Garret, «O Roubo das Sabinas». Os caminhos da virtude são amenos e suaves, enquanto os do pecado não são. «A virtude nem é difícil nem é árdua», diz Garret, de quem Augusto da Costa Dias cita ainda estes versos:
Não, filho, só no crime há dor e angústia,
Só delícia e prazer há na virtude».
Aliás se bem interpreto é este o tópico profundo de Sartre ao interpretar Genet. Daqui se chega ao conceito de pecado como martírio, à ideia (sacrílega?) de que há uma santificação a que se pode chegar no Reino do Mal (como no Reino do Bem), daqui se chega à glorificação do mal, no sentido explicado perlo autor da Notre Dame des Fleurs: «há uma glória segregada pelos folhos da infelicidade».
Há, pois, uma santidade pela execração. Sartre chama a atenção em Saint Genet, Comédien et Martyr para o impulso que leva certos homens a procurar o desprezo e a buscar o julgamento dos outros homens. Ao lado da exemplaridade negativa. Em Jean Genet, e segundo a análise sartreana, há uma vontade de identificação com todos os pecados do mundo. Como ponto culminante desta Ética do Mal temos a ideia de que ela (da mesma forma que a Ética do Bem) também implica uma Graça.
A DEFESA DA EXEMPLARIDADE POSITIVA PELO CASTIGO
Tirso de Molina tinha de castigar o terrível D. Juan. O Burlador de Sevilha é, por isso, e segundo a moral oficial, uma obra de tendência morigeradora. Deus intervém sobrenaturalmente na figura do Convidado de Pedra e D. Juan vai par as profundas do Inferno. Mozart não pretendeu melhor solução. Não é que o sedutor sevilhano fosse, todavia, um descrente. O Leitor distraído sabe que, perante e iminência do castigo, pede um sacerdote, a fim de obter um perdão à tangente, oportunidade de redenção que lhe é negada. Assim é castigado. O nosso Guerra Junqueiro não deixa de não ter tido um espírito menos morigerador. À sua mentalidade, a este respeito pudibunda, não lhe soaria bem o triunfo do Libertino. Falar de um D. Juan, de um sedutor, é procurar-lhe simultaneamente uma punição qualquer: a defesa da exemplaridade positiva.
O Burlador de Braga, ou seja, Luiz Pacheco, não deixa também de não ser perseguido pela hantise da penitência. O Libertino passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor, abre com a premonição da morte. Mas o que salva Luiz Pacheco de cair no cliché é a solução magistral para o problema do castigo. Falhada a peregrinação erótica, esquivas ou inatingíveis as lolitas, O Libertino nega-se como tal, confessa a sua queda, a sua demissão a sua derrota.
O «esplendor» que ele passeia por Braga é, portanto, um esplendor negativo, porque em Braga toda e qualquer tentativa de contágio libertino tem de acabar em fracasso. A cidade minhota é, pois, emblemática do Calvário do Libertino, não só a coutada inacessível à caçada, como ao espírito, que a dita. O Calvário é representativo da reacção conservadora a uma certa mentalidade revolucionária ou à doutrinação que dela deriva. Engloba, na sua mitologia, uma certa forma de castigo ditado pelos acusadores. O Convidado de Pedra de Tirso de Molina simboliza esse júri silencioso, mas tremendamente eficaz, que é a moral do Establishment. Guerra Junqueiro, em A Morte de D. João, soube (apesar da Velhice do Padre Eterno) ser dela um perfeito porta-voz, em nome da piedade humanitarista pelas vítimas dos burladores.
Mas no livro de Luiz Pacheco o Libertino não pode ser englobado no sector dos acusados. Nisto é que a personagem se opõe diametralmente a D. Juan, e é mesmo um anti-D. Juan. A argúcia de Pacheco foi ver esta implicação fundamental, ao definir a personagem por meio de uma caraterologia que é, detalhe por detalhe, uma «teologia negativa» relativamente à personagem tradicional. É certo que esta degradação do sedutor já tem antecedentes na literatura portuguesa. Estou a lembrar-me da forma como Gomes Leal a retrata nas Claridades do Sul. Mas Luiz Pacheco transcende obviamente estes planos, ligando o seu Libertino a outra genealogia. Poder-se-á mesmo dizer que a progénie do seu Libertino nada tem a ver com qualquer tradição. Pelo menos com a nossa tradição.
Mas não me interessando deslindar este aspecto há que afirmar que Luiz Pacheco coloca, com argúcia, a sua personagem no sector dos acusadores da sociedade. Os pecadores contra a instituição da heterosexualidade, como Gide, não deixam, a cada momento azado, de procurar a justificação. No fundo sentem-se sempre, e profundamente, no banco dos réus. Corydon ou Si le grain ne meurt são discursos de defesa contra uma Sociedade de dedo apontado. Gide está no limiar de Genet. E Genet já acusa, obviamente.
Seria injustiça, todavia, dizer que Luiz Pacheco é um mini-Genet ou um Libertino de bolso de colete. Bastaria a profunda genuinidade de O Libertino passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor, o seu carácter, a sua atmosfera tão portuguesa, para demitirmos o juízo derrogativo. Até porque Luiz Pacheco escolhe para oferecer-nos a face em que o Libertino não se realiza, em que tudo rigorosamente lha falha, e em que o libertinismo se limita a uma nem sempre muito atrevida aventura mental. Não é este o caso de Genet, se bem interpreto.
O casanovismo frustrado deste Libertino leva-o de decepção em decepção O que lhe interessa é pecar, pecar pela carne, pecar é viver, e tudo o mais é uma forma de morte. A realidade última do homem, o seu mais profundo estrato, aquilo que mais susceptível é de aprofundar as zonas obscuras da consciência, ou de tornar possível a pesquisa da autenticidade humana, a vida em estado puro (como foi moda dizer-se), tudo isso vai ser negado ao Libertino. A sua marcha através de Braga é, pois, uma auto-flagelação, um exercício de masochismo mental, porque a cidade minhota descobriu, e explora, as suas formas ersátzicas de vida, e estas têm um peso demasiado grande para que qualquer Libertino individualista as vença como um novo Cristo.
A MISÉRIA REABILITADA?
Uma implicação ideológica profunda é aquela segundo a qual se poderia dizer que este livro de Pacheco tenta a reabilitação de um certo estado de miséria. A poetização da miséria. A miséria como fonte de maravilha. Mas em todas as coisas aparentemente negativas pode haver uma faceta positiva. É que, com efeito, este poeta maldito que nos aparece no livro de Pacheco (e não interessa que nos asseverem que é um rigoroso alter ego do autor) assume a miséria como recusa militante do Establishment, não acreditando que este possa ser destruído, por exemplo, pelas atitudes de V. S., personagem indirecta da narrativa, mas importantes pelo seu simbolismo. O negativismo romântico do Libertino leva-o, como se vê a um corte com todas as formas organizadas de resistência. Para ele só há uma forma de dignidade: é a de recusar tudo.
É esta atitude heróica, que leva à miséria e ignomínia, através de um Calvário de auto-aniquilação, o que profundamente o livro de Luiz Pacheco simbolilza, postula e retrata.
Que para além das implicações diversas, mais ou menos especulativas, e com a feição da ideologia a que cada qual se agarra (ou finge), seja dito, porém, que O Libertino passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor é, pela novidade da linguagem, e pelo desassombro do depoimento, uma obra rigorosamente única da nossa moderna ficção.
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