Monday, October 15, 2007

Saldos do Ano Acabado



Saldos do Ano Acabado – um texto de Mário Cesariny publicado no Jornal de Letras e Artes, do dia 29 de Janeiro de 1964, e que está incluído na edição As Mãos na Água A Cabeça no Mar, Assírio & Alvim, Lisboa, 1985, relatando uma sessão de leitura de poesia na Sociedade Nacional de Belas Artes, onde Fernando Ribeiro de Mello foi um controverso leitor de O´Neill. Cesariny não refere a data em que a sessão se realizou, mas tal como outra já apresentada nesta página, é provável que esta também tenha tido FRM na organização.

Saldos do Ano Acabado

"De entre as manifestações recitadas, e não foram poucas, que no ano passado surgiram destinadas a fazer conhecer poetas, ou novos poetas, só a uma me foi dado assistir: avisado a tempo por voz amiga de que ia dar-se não sei que provocação na sala – o salão da Sociedade Nacional de Belas Artes – não pude deixar de ir, para o caso se ser preciso observar. Para conforto e sossego de todos, tal não chegou a acontecer. Iniciada a sessão, cujo projecto de base era porem-se os poetas que vivem em Lisboa, e alguns de fora, a dizer os poemas próprios para regalo de pública assistência – projecto que logo falhou porque alguns resistiram, não foram, outros, como o autor destas linhas, foram mas não quiseram – iniciada a sessão, e depois de bem enxovalhado o poeta Almada Negreiros, que a abrira, esta caiu no normal e vulgar assassinato amador de poesia que é regra no nosso tempo, nos nossos salões, e entre o nosso público, por mais que uma ou duas consciências mais avisadas se misturem às organizações e tentem promover.
Na parte que mais de perto me tocou, a grande actriz Mariana Rey Monteiro, dignando-se ler um pequeno poema meu, enganou-se logo no primeiro verso, e a sua voz bem modulada e o sortilégio da sua figura levaram o público, a galope, para as montanhas da Hélada, a mim aquele erro soube-me a aviso sumário. Seguiu-se o grande actor Paulo Renato que também leu um poema. Estava despachado. E diga-se: sem especial motivo de queixume, pois, embora a minha recusa (desagradável), os meus pequenos poemas haviam sido confiados a artistas probos, do melhor que o nosso teatro tem e que sem dúvida deram o melhor que o seu tempo e a sua arte permitem. Mas eis que entram os revolucionários! Contra a minha expectativa, que os esperava na sala, no meio do público aturdido, eles estavam no estrado dos recitadores, eram eles os recitadores! Ouvi um poema de Alexandre O´Neill dito por Fernando Ribeiro de Mello, que era uma carnagem sem ferio, a dente e a cutelo, à obra lida. E o «recitador», agradecendo as vaias e os aplausos, batia com a mão no papel lido, exclamando: É assim mesmo! Toma lá cinco! Tintos, respondiam da sala! Seguiram-se outros poetas, também por leitura: irreconhecíveis! Às duas da manhã ainda havia gente a ver passar os enterros. A alegria era geral. Salvavam-se do massacre Natália Correia, António Gedeão, que disseram muito bem os seus poemas, David Mourão-Ferreira, bastante ovacionado, Armindo Rodrigues, apesar da voz sumida. Os outros, eram um chão de Alcácer-Kibir.
Esclareço que não é minha intenção atacar este recital, ou pseudo-recital, de poesia, ou este em especial. De há alguns anos para cá, com a chegada de uma gente nova – que responde, aliás, ao rabo-leva de «novíssima» que está a dar na poesia última em data – que estes recitais (poesia lida) se sucedem com o agrado evidente de quem lê não lhes custa trabalho nenhum, é abrir o livro emprestado e zás, dar à língua e altear a dextra mantendo firme a canhota, e a admiração de quem escuta, que também não dá trabalho; é conservar a cadeira e voltar para casa incólume. Era minha intenção, sim, mas não sei se o faça já, se o faça já aqui, pedir às pessoas idóneas, mas, mais lato e mais forte, se possível, à em principio bela, magnifica juventude por conta da qual corre, na sua maior parte, a organização destas leituras, que se deixem disso, porque estão a ser enganados: por si próprios, pelo público e pela crítica."