Luiz Pacheco por Serafim Ferreira
Na continuação do Capítulo 12 dedicado a Fernando Ribeiro de Mello, Serafim Ferreira em Olhar de Editor, prossegue o texto recordando Luiz Pacheco (na foto).
Mas, por ter andado muito ligado ao editor da Afrodite, nos altos e baixos da sua condição de escriba, tenho forçosamente de lembrar a vida de editor pobre, e não apenas dos seus próprios livros, levada e conhecida por Luiz Pacheco, que não sei se algum dia o conheceste ou com ele falaste. E ficas já a saber, meu bom Silveira, que sendo ele Luís de nome próprio como tu, este Pacheco de quem se torna inevitável que dele fale nesta narrativa teve uma vida de sete e mais fôlegos, padeceu o que nem ao diabo lembra, mas fez a sua travessia na coerência e justa pretensão de publicar alguns bons livros que fez chagar ás mãos de muita gente através de um ficheiro bem organizado e em trabalho artesanal de largos anos. Editou o livros que mais lhe agradaram, alguns assinalaram mesmo a estreia literária dos seus autores (Herberto Helder, Manuel de Lima, António Tavares Manaças ou Carlos Wallenstein), e devo dizer-te que foi ainda companheiro e amigo de poetas e pintores ligados ao surrealismo português.
E sempre te digo que Luiz Pacheco frequentou o Liceu Luis de Camões, e a cada passo não deixava de proclamar que teve excelentes professores com Câmara Reys em Literatura, Delfim Santos em Filosofia e João de Brito em Latim, mas confessará mais tarde que nunca envergou a farda da Mocidade Portuguesa porque o pai era muito forreta e o dinheiro não dava para tudo, concluiu o liceu sem chumbar nenhum ano, e nesse desejo de continuar a estudar entrou no curso de Filologia Românica da Faculdade de Letras, onde teve colegas como Mário Soares, Urbano Tavares Rodrigues e Artur Ramos. Depois, em mil novecentos e quarenta e seis, sem concluir o curso, ingressou na Inspecção dos Espectáculos como fiscal e depois como terceiro oficial, manteve-se em funções uns treze ou catorze anos, mas foi em mil novencentos e cinquenta que Luiz Pacheco iniciou a actividade de editor da Contraponto ao publicar os dois únicos números dos “Cadernos de Crítica e Arte”, com colaboração de Augusto Abelaira, Vasco Vidal, Artur Ramos, Jaime Salazar Sampaio e Eugénio Cardigos.
Olha, meu caro, foi assim que ficou assinalado o começo da aventura editorial que para Luiz Pacheco não teria sossego, no irregular aparecimento das edições, mas serviu no correr dos anos para publicar com essa chancela os seus próprio livros, a par de textos de autores pouco conhecidos como Apollinaire, Castelao, Durrenmantt, Ionesco, Jaspers, Kleist, Sade, Suassuna, César Vallejo, Pablo Neruda ou Tchekov. E, daqui em diante, meu amigo, creio que não importa muito falar dos atropelos da vida pelos descaminhos conhecidos nas casas e quartos alugados que o autor de Textos Malditos teve em Lisboa, Massamá, Caldas da Rainha, Setúbal, Montijo e noutras paragens, nem dizer das mulheres e filhos que vieram, das desgraças e amarguras sofridas, dos peditórios feitos de papel estendido para solicitar a ajuda que não chegou ou veio tarde, como disso falara em “O Que é o Neo-Abjeccionismo”, texto que foi dado a conhecer por Mário Cesariny, na Casa da Imprensa, em trinta de Março de sessenta e três, onde Pacheco confessava ou não deixava de reclamar:
Tenho trinta e sete anos, casado, lisboeta, português. Estou na cama de uma camarata, a seis paus a dormida. É asseado, mas não recebo visitas. Também não me apetece fazer visitas. A ninguém. Estou bastante só. Perdi muito. Perdi quase tudo.
E talvez nem interesse agora falar-te, meu caro, das muitas doenças e internamentos hospitalares em Coimbra ou Torres Vedras, mesmo das prisões por desvarios amorosos ou atrevimentos que Luiz Pacheco conheceu na Cadeia Civil das caldas e no Limoeiro, porque de tudo isso soube ele falar em belíssimos textos marcadamente autobiográficos, e o que perpassava nos seus livros é a verdade sincera do que viveu dentro de si mesmo, numa dolorosa experiência feita e sofrida, e assim fazendo da literatura esse corpus essencial de uma obra que facilmente se não integra nos modelos tradicionais e normais padrões de comportamento.
Olha, talvez estejas de acordo comigo, tu que do Luiz Pacheco leste e bem Crítica de Circunstância e Textos Locais, porque de um e de outro desses livros me falaste com vivo entusiasmo, prometeste mesmo escrever sobre eles e afinal não publicaste uma linha, mas no fundo não lhe cabe a honra nem a glória pelo caminho percorrido ou pelos livros que pôde editar, tudo foi fruto das circunstâncias dessa aventura poucas vezes atapetada de rosas, sempre marcada por um viver quotidiano quase à beira do abismo, arrastando quem de si estava mais perto, ou seja, a sua tribo ou comunidade na presença de várias mulheres e muitos filhos às costas.
Autor polémico e sempre interventor no plano literário e editorial nos últimos quarenta anos, Luiz Pacheco permanece como editor de textos muito próprios, por vezes ditados pelo calor da amizade e desejo de não esquecer os amigos que andaram em sua companhia, como aconteceu com a reedição na Contraponto de Relógio de Cuco de Virgílio Martinho ou de Memorando Mirabolando, livro que é um misto de memórias e de intervenção cultural, ou O Uivo do Coiote, que Acácio Barradas pôde prefaciar. E assim te reafirmo que, pela sua posição crítica, literária e cultural, Pacheco consolidou ou deu a conhecer, sem nada ter escondido, uma certa maldição ou o seu expressivo atrevimento, jamais se acomodou dentro de padrões que fizessem desviar o sentido desse pessoal discurso ou aliviassem os propósitos irónicos e críticos dos seus textos. E, vencida a curva da idade em mais de setenta anos de vida, aflito e angustiado no meio dos seus achaques, Luiz Pacheco deseja por fim ter a tranquilidade que merece num “lar de avós”, bem perto do Castelo de Palmela de outras histórias e combates. E, sabes, não é por estar cansado da guerra travada em suplícios que passaram à história, mas porque o corpo já pagou demais por tantos e tamanhos abusos, receia de um momento para o outro que se zangue em definitivo, adeus até ao meu regresso. Mas tudo foi pouco em vida tão cheia de dissabores que este escritor e editor de espírito rebelde, satânico atrevido, lúcido e inconformado, deve ainda dispor de paz e sossego para arrumar todos os papéis, escrever algumas crónicas, ler os livros dos outros como impenitente leitor que jamais deixou de ser e desse modo acertar as últimas contas no deve e haver de um pessoal livro da vida.
Por último, digo-te ainda, meu caro amigo, que no terreno literário que desbravou, Luiz Pacheco espalhou nesse caminho como tantos outros as pedras necessárias apara se entender e uma outra luz o que foi a literatura e a edição portuguesa dos últimos cinquenta anis deste século:
- Olha, por si e por nós que andámos a seu lado. A favor dos livros e pela qualidade do seu discurso literário ou acção de editor: único, implacável, definidor de outras regras que pouca gente lhe perdoou. E por isso respeito que tudo foi tanto e tão pouco.
Mas, por ter andado muito ligado ao editor da Afrodite, nos altos e baixos da sua condição de escriba, tenho forçosamente de lembrar a vida de editor pobre, e não apenas dos seus próprios livros, levada e conhecida por Luiz Pacheco, que não sei se algum dia o conheceste ou com ele falaste. E ficas já a saber, meu bom Silveira, que sendo ele Luís de nome próprio como tu, este Pacheco de quem se torna inevitável que dele fale nesta narrativa teve uma vida de sete e mais fôlegos, padeceu o que nem ao diabo lembra, mas fez a sua travessia na coerência e justa pretensão de publicar alguns bons livros que fez chagar ás mãos de muita gente através de um ficheiro bem organizado e em trabalho artesanal de largos anos. Editou o livros que mais lhe agradaram, alguns assinalaram mesmo a estreia literária dos seus autores (Herberto Helder, Manuel de Lima, António Tavares Manaças ou Carlos Wallenstein), e devo dizer-te que foi ainda companheiro e amigo de poetas e pintores ligados ao surrealismo português.
E sempre te digo que Luiz Pacheco frequentou o Liceu Luis de Camões, e a cada passo não deixava de proclamar que teve excelentes professores com Câmara Reys em Literatura, Delfim Santos em Filosofia e João de Brito em Latim, mas confessará mais tarde que nunca envergou a farda da Mocidade Portuguesa porque o pai era muito forreta e o dinheiro não dava para tudo, concluiu o liceu sem chumbar nenhum ano, e nesse desejo de continuar a estudar entrou no curso de Filologia Românica da Faculdade de Letras, onde teve colegas como Mário Soares, Urbano Tavares Rodrigues e Artur Ramos. Depois, em mil novecentos e quarenta e seis, sem concluir o curso, ingressou na Inspecção dos Espectáculos como fiscal e depois como terceiro oficial, manteve-se em funções uns treze ou catorze anos, mas foi em mil novencentos e cinquenta que Luiz Pacheco iniciou a actividade de editor da Contraponto ao publicar os dois únicos números dos “Cadernos de Crítica e Arte”, com colaboração de Augusto Abelaira, Vasco Vidal, Artur Ramos, Jaime Salazar Sampaio e Eugénio Cardigos.
Olha, meu caro, foi assim que ficou assinalado o começo da aventura editorial que para Luiz Pacheco não teria sossego, no irregular aparecimento das edições, mas serviu no correr dos anos para publicar com essa chancela os seus próprio livros, a par de textos de autores pouco conhecidos como Apollinaire, Castelao, Durrenmantt, Ionesco, Jaspers, Kleist, Sade, Suassuna, César Vallejo, Pablo Neruda ou Tchekov. E, daqui em diante, meu amigo, creio que não importa muito falar dos atropelos da vida pelos descaminhos conhecidos nas casas e quartos alugados que o autor de Textos Malditos teve em Lisboa, Massamá, Caldas da Rainha, Setúbal, Montijo e noutras paragens, nem dizer das mulheres e filhos que vieram, das desgraças e amarguras sofridas, dos peditórios feitos de papel estendido para solicitar a ajuda que não chegou ou veio tarde, como disso falara em “O Que é o Neo-Abjeccionismo”, texto que foi dado a conhecer por Mário Cesariny, na Casa da Imprensa, em trinta de Março de sessenta e três, onde Pacheco confessava ou não deixava de reclamar:
Tenho trinta e sete anos, casado, lisboeta, português. Estou na cama de uma camarata, a seis paus a dormida. É asseado, mas não recebo visitas. Também não me apetece fazer visitas. A ninguém. Estou bastante só. Perdi muito. Perdi quase tudo.
E talvez nem interesse agora falar-te, meu caro, das muitas doenças e internamentos hospitalares em Coimbra ou Torres Vedras, mesmo das prisões por desvarios amorosos ou atrevimentos que Luiz Pacheco conheceu na Cadeia Civil das caldas e no Limoeiro, porque de tudo isso soube ele falar em belíssimos textos marcadamente autobiográficos, e o que perpassava nos seus livros é a verdade sincera do que viveu dentro de si mesmo, numa dolorosa experiência feita e sofrida, e assim fazendo da literatura esse corpus essencial de uma obra que facilmente se não integra nos modelos tradicionais e normais padrões de comportamento.
Olha, talvez estejas de acordo comigo, tu que do Luiz Pacheco leste e bem Crítica de Circunstância e Textos Locais, porque de um e de outro desses livros me falaste com vivo entusiasmo, prometeste mesmo escrever sobre eles e afinal não publicaste uma linha, mas no fundo não lhe cabe a honra nem a glória pelo caminho percorrido ou pelos livros que pôde editar, tudo foi fruto das circunstâncias dessa aventura poucas vezes atapetada de rosas, sempre marcada por um viver quotidiano quase à beira do abismo, arrastando quem de si estava mais perto, ou seja, a sua tribo ou comunidade na presença de várias mulheres e muitos filhos às costas.
Autor polémico e sempre interventor no plano literário e editorial nos últimos quarenta anos, Luiz Pacheco permanece como editor de textos muito próprios, por vezes ditados pelo calor da amizade e desejo de não esquecer os amigos que andaram em sua companhia, como aconteceu com a reedição na Contraponto de Relógio de Cuco de Virgílio Martinho ou de Memorando Mirabolando, livro que é um misto de memórias e de intervenção cultural, ou O Uivo do Coiote, que Acácio Barradas pôde prefaciar. E assim te reafirmo que, pela sua posição crítica, literária e cultural, Pacheco consolidou ou deu a conhecer, sem nada ter escondido, uma certa maldição ou o seu expressivo atrevimento, jamais se acomodou dentro de padrões que fizessem desviar o sentido desse pessoal discurso ou aliviassem os propósitos irónicos e críticos dos seus textos. E, vencida a curva da idade em mais de setenta anos de vida, aflito e angustiado no meio dos seus achaques, Luiz Pacheco deseja por fim ter a tranquilidade que merece num “lar de avós”, bem perto do Castelo de Palmela de outras histórias e combates. E, sabes, não é por estar cansado da guerra travada em suplícios que passaram à história, mas porque o corpo já pagou demais por tantos e tamanhos abusos, receia de um momento para o outro que se zangue em definitivo, adeus até ao meu regresso. Mas tudo foi pouco em vida tão cheia de dissabores que este escritor e editor de espírito rebelde, satânico atrevido, lúcido e inconformado, deve ainda dispor de paz e sossego para arrumar todos os papéis, escrever algumas crónicas, ler os livros dos outros como impenitente leitor que jamais deixou de ser e desse modo acertar as últimas contas no deve e haver de um pessoal livro da vida.
Por último, digo-te ainda, meu caro amigo, que no terreno literário que desbravou, Luiz Pacheco espalhou nesse caminho como tantos outros as pedras necessárias apara se entender e uma outra luz o que foi a literatura e a edição portuguesa dos últimos cinquenta anis deste século:
- Olha, por si e por nós que andámos a seu lado. A favor dos livros e pela qualidade do seu discurso literário ou acção de editor: único, implacável, definidor de outras regras que pouca gente lhe perdoou. E por isso respeito que tudo foi tanto e tão pouco.
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