Thursday, January 10, 2008

Fernando Ribeiro de Mello por Serafim Ferreira


O décimo segundo capítulo de Olhar de Editor, de Serafim Ferreira (na foto) é dedicado a Fernando Ribeiro de Mello:

Capítulo 12

Decido agora falar-te e com inteira justiça, meu caro Luís Silveira, de outro editor Fernando Ribeiro de Mello de seu nome, por guardar dele boas recordações pelo convívio no Porto da nossa adolescência e sempre o rever nos sues dezoito ou dezanove anos, muito empertigado e bem fardado, era então voluntário da Força Aérea, quando passeava garboso à hora de saída das empregadas das lojas de Santa Catarina e de Santo António, mas não sei se isso lhe trouxe algum proveito.
Muito ousado nas suas atitudes e de carácter irreverente que manteve até ao fim da vida, o editor da Afrodite só em Lisboa revelaria em medos dos anos sessenta todo o sentido provocador desse atrevimento que algumas vezes foi motivo de notícia nos jornais: primeiro, em Outubro de sessenta e quatro, desejando avisar a cidade da sua chegada , pôde então promover na Sociedade Nacional de Belas-Artes um recital de poesia que deu escândalo, não pela ausência intencional de vários poetas , nas antes pelo descalabro em que tudo redundou, entre berros e protestos, porque no acto pomposo de saber recitar todos os poemas, Ribeiro de Mello quis avaliar a importância de cada poeta pelo tempo que duravam as palmas da assistência, como se estivesse no Coliseu e toda a gente exigisse fosse repetida alguma outra peça ou o maestro agradecesse as palmas com um número fora do programa.
Não sei, mas o que te lembro, meu amigo, é que um dos poetas mais aplaudidos e, portanto, um dos mais importantes foi precisamente o autor de Caralhamas, esse mesmo, é verdade, que conheceste e de quem ouviste falara na tua passagem pela Covilhã, quando ali estiveste como professor. Imagina como são as coisas, meu caro Silveira. E, sabes outra coisa, apenas depois deste incidente poético, é que Ribeiro de Mello se aventurou como editor e depressa se afirmou pelo sentido de renovação que trouxe nessa actividade seguida com redobrado entusiasmo ou ainda pelo atrevimento der publicar o que parecia impublicável: por exemplo, a cuidada edição da célebre Antologia de Poesia Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia e publicada em mil novecentos e sessenta e cinco. A Antologia foi de imediato retirada de circulação e alguns dos poetas nela incluídos condenados em tribunal por crimes de ofensa à moral pública, e ainda me lembro de um dos textos mais polémicos como o “Coro de Escárnio e lamentação dos Cornudos em Volta de São Pedro”, que o saudoso Mário Viegas declamaria com soberbo sentido irónico num disco a que chamara Humores, e o Luiz Pacheco me ofereceu em encontro casual na rua da Misericórdia, talvez para se sentir mais aliviado do peso dos sacos que trazia consigo nessa tarde.
E, no ano seguinte, sabes, Fernando Ribeiro de Mello reincidiu com a edição da Filosofia na Alcova do divino Marquês da Sade, que também foi prontamente apreendida e levou à condenação de Luiz Pacheco e de Herberto Helder em Tribunal Plenário por manifesto abuso de liberdade de imprensa, um por ter traduzido e outro por ter prefaciado o livro, e agora relembro que esse juiz fascista e pulha se chamava Arelo Manso e assim o pronuncio para que fiques a conhecer o seu nome e os leitores desta minha narrativa não o esqueçam.
Mas o editor da Afrodite de alguma forma alteraria depois o sentido da sua intervenção editorial, voltando-se para os textos dos nossos clássicos, e no marcado apareceram novas edições de Arte de Furtar, Peregrinação e História Trágico-Marítima, sempre acompanhadas por excelentes estudos críticos, a para de uma Antologia do Humor Português, que Virgílio Martinho e Ernesto Sampaio, souberam organizar com todo o rigor e elucidativas notas biobibliográficas dos autores nela representados, ou ainda uma bonita edição dos Textos Malditos de Luiz Pacheco, com capa e ilustrações de Henrique Manuel. E, por falar, de Abril, meu caro, recordo que um dos meus encontros com Ribeiro de Mello após a revolução foi no largo do Camões, quando o vi entrar num carro ainda novinho em folha e, diante desse meu espanto, logo exclamou:
- Olha, foi esta a forma que tive para saudar o vinte e cinco de Abril.
E eu sorri, entrei e aproveitei a boleia até à estação do Rossio. Depois, os anos passaram, os reencontros sempre aconteceram um pouco por toda a parte, sobretudo pelo Chiado ou no Montecarlo que deixou de existir, até ao último encontro que aconteceu nessa manhã, de sol de maio quando, à porta da Brasileira, me disso que em breve iria sujeitar-se a uma delicada operação em Coimbra:
- Sabes, sofro de um aneurisma e vou ser operado dentro de dias. Mas tudo vai correr bem, sei que estou em boas mãos.
Olha, meu caro amigo, o brilho que irradiou nos olhos do Ribeiro de Mello: parecia acreditar com grande confiança que os deuses o não abandonariam e depressa recuperaria o humor e a disposição de espírito de outros tempos. Abanei a cabeça, reafirmei que nada de mal aconteceria e assim nos despedimos com um abraço. Mas só eu sei, meu caro, o que sento quando alguns dias depois, confirmada a nótícia da sua morte, não deixei de evocar como esse encontro no Chiado de muitas conversas foi afinal o derradeiro. Para sempre.