Wednesday, November 14, 2007

Apresentação de Cami


Em jeito de prefácio à edição do post anterior, o tradutor Liberto Cruz (na foto) escreveu uma apresentação de Pierre-Henri Cami:

Pierre-Henri Cami, ou simplesmente Cami, como era e ficou conhecido, pertence ao número daqueles escritores que, depois de terem entusiasmado e feito a delícia duma geração, se perde subitamente no emaranhado das novidades que o tempo arrasta e vai fabricando sem cessar.
Cidadão francês, nascido em Pau, em 1884, entra aos 19 anos para o Conservatório onde se não demora muito. Todavia o teatro, com todos os seus truques e malabarismos, vai-lhe ser útil no campo das letras. Tendo aprendido e sabendo perfeitamente como deve conquistar o espectador e faze-lo rir, Cami traz para a literatura toda essa técnica do inesperado, do absurdo, do ingénuo, do cómico, do atroz, do riso amargo e expontâneo.
Em 1910 (cinco anos depois da morte de Alphonse Allais), Cami funda e dirige Le Petit Corbillard Illustr, organe Coporatif et humoristique des Pompes Funébres. Trata-se de um bi-mensário que declara não reconhecer os Académicos como Imortais, e adopta a seguinte divisa: Humor, Prazer e Necrotério.
Autêntico topa-a-tudo, Cami desdobra-se febrilmente para ser ilustrador, poeta, contista, autor de canções, escrevinhador de pilhérias e longos artigos repassados de humor e fantasia. O jornal dura pouco (uns escassos sete números) mas o tempo suficiente para impor e tornar conhecido o nome de Cami. Solicitado por vários jornais e revistas, a todos atende com afinco e entusiasmo. Escrever parece ser a sua única função na vida. A este propósito, diz-nos Michel Laclos:

«Durante anos e anos, vai escrever, escrever sem parar, renunciando a qualquer outra actividade, tomando apenas o tempo para se alimentar, assistir ao baptismo e depois ao casamento da filha. Escreve. Podemos lê-lo em Le Petit Parisien, Excelsior, Le Dimanche Ilustré, Paris-Soir, Le Mercle Blanc, L´Humor, Paris–Matinal, Vanity-Fair, etc.».

Discípulo de Alphonse Allais, os seus primeiros trabalhos denunciam uma clara influência do Mestre do non-sens e do absurdo. Aliás, era inevitável, Allais deixou a sua marca inconfundível em todos os humoristas que se lhe seguiram. Cami consegue, no entanto, libertar-se, mercê dum trabalho exaustivo e duma imaginação fertilíssima. Os leitores dos periódicos do primeiro quartel do nosso século aguardam com impaciência La Semaine Camique, entusiasmam-se com as delirantes Aventuras do Barão de Crac, pasmam com as deduções e a astúcia do celebérrimo detective Loufock-Holmés, reconhecem-se com gáudio e receio nas atribulações ridículas da Família Rikiki. Compra-se o jornal para ler Cami, para rir com Cami. E os leitores jamais deixarão de fazê-lo. O humor de Cami é destruidor e salutar, construtivo e sentencioso, absurdo e ingénuo, satânico e lírico, negro e delicioso, fantástico e real, surreal e romântico.
Autor de dezenas de romances e várias centenas de contos, a obra de Cami, mesmo em França, está longe de ser conhecida. Assinale-se contudo o entusiasmo crescente que vem tendo ultimamente, como que a recompensar o injusto esquecimento em que caiu.
Saudado em vida por um Charlie Chaplin, que lhe chamou o maior humorista do mundo, por um Ramon Gomez de la Serna, um Ionesco, e tantos outros, morreu em 3 de Novembro de 10958, com 74 anos de idade. Ainda segundo Michel Laclos, a lista dos jornais que lhe consagraram uma notícia de sua morte cabia à vontade nas costas duma caixa de fósforos.
Ao publicarmos esta selecção de contos de Cami, uma das primeiras em língua portuguesa, não temos a pretensão de o revelar. O autor de O Desglandulado da Floresta Virgem é já conhecido de muita gente. Que o digam alguns humoristas portugueses...

Jonas Ou o Amor numa Baleia e outros Contos, é especialmente para o grande público, para os que gostam de rir mas sabendo sempre porquê. E Cami concede-nos generosamente esse privilégio. Com uma economia de palavras, uma linguagem acutilante aparentemente ingénua, uma sábia condução no enredo que narra, um desfecho inesperado para cada história, um humor especial para cada personagem, para cada classe, uma fantasia transbordante e uma imaginação sempre renovada, Cami escrevia para toda agente. Por isso, os contos apresentados neste volume são susceptíveis de conquistar o mais exigente dos leitores. Jamais se afastando da vida de todos os dias e deliberadamente mergulhado no quotidiano, é dos homens e das coisas do seu tempo, e de todos os tempos, que fala e escreve. É certo que o seu processo literário foge constantemente para o surreal, para o absurdo, mas isso é apenas um modo de tornar mais real e viva a ficção que dolorosamente o atormentava.
Se o aparecimento destes contos de Cami levar o leitor a interessar-se pela sua obra e pelo extraordinário humour camique, é porque conseguimos o nosso objectivo. E isso nos basta.

Liberto Cruz