Friday, May 08, 2009

“Vou a Coimbra ver o otorrino.”

Regressamos ainda à recente edição de O Festim da Aranha, ao qual já aqui fizemos referência. Uma edição da Assírio & Alvim que garante descendência à Antologia do Conto Abominável, das Edições Afrodite.
Num texto incluindo no Festim da Aranha, no lugar onde devia estar O Alma-Grande, de Miguel Torga, Aníbal Fernandes esclarece os contratempos que impediram a inclusão do conto do escritor português em ambas as antologias de contos cruéis.

Apresentamos um excerto desse texto:

– Sim, de novo. É a segunda nega que O Alma-Grande dá a uma antologia da mesma zona literária. Com a minha melhor letra de 1969, escrevi ao Torga uma carta onde pedia autorização para fazê-lo figurar numa outra antologia [Antologia do Conto Abominável, Lisboa, Afrodite, 1969] que é antepassado directo desta. Dez contos, entre os vinte e um de O Festim da Aranha, escorregaram dessa recolha que assumia um critério um pouco diferente. Eu punha-o nos píncaros, como ele secretamente gostava contorcendo embora o rosto em sentido contrário. Mostrava-lhe que conhecia a sua obra e confiei, já que na carta de abertura da segunda edição de Novos Contos da Montanha me chamava Querido Leitor e tratava por tu. Era um engano. Eu era querido quando o lia, e muito menos querido quando lhe pedia. Mas nenhuma surpresa ainda assim eu teria se recusasse. Surpreendia-me não dizer nada nem mandar alguém dizê-lo.«O seu silêncio absoluto levou o editor a comunicar-me: “Vou a Coimbra ver o otorrino.”Achei má ideia e com duvidosos resultados. Insistiu com sarcasmo: “Levo-lhe umas amígdalas bem infectadas, uns adenóides, talvez uma otite...” Respondi-lhe que não se mostrasse Rei Mago a fazer oferendas, e acrescentei: “O otorrino só é visto em dias que nasçam nublados dentro e fora de si próprio; de manhã cedo ou então ao entardecer, quando passa em direcção à Atlântida.” Falou-me depois de um amigo que conseguia aproximar-se até bastante perto do seu eriçado isolamento. Qual quê! Soprou-lhe um não agreste, de vento entre as pedras. Mas pouca importância prática isto chegou a ter, porque o livro vendeu-se menos de um mês, retirado do mercado pela polícia de Salazar.
– Era assim tão político?
– Não. Hoje vai estando esquecido que a polícia pastoreava com vara grossa a arte que mexesse na política, nos costumes, no erotismo e nos excessos. O editor Ribeiro de Mello era malquisto porque enfrentava, com um desaforo até ali desconhecido, as normas tuteladas pelo regime. O livro somava excessos. No cinema, uma Bette Davis de grand-guignol só matava com uma martelada, e não várias, a criada de O Que Teria Acontecido a Baby Jane?; o espectador português foi poupado à maior parte da morte por extenso numa câmara de gás, que Susan Hayward interpretava até à última contorsão em Quero Viver! O lusitano tinha de ser desviado dos excessos porque poderia, manipulado por eles, embriagar-se e ceder a desvarios que seguem pela grande verdade do saber algarvio: só se sabe como começam...
– Dizes bem...
– De qualquer forma, a recusa do Torga teve um curioso ricochete no artigo que o jornalista Acácio Barradas escreveu para o Diário Popular. Chama-se A Misantropia de Miguel Torga e começa por relembrar pedaços de outro, do Luiz Pacheco no Jornal de Notícias do Porto. Tenho-o aqui. Tinha já dito Luiz Pacheco: “Particularmente, sabemos que Aníbal Fernandes desejava incluir ainda O Alma-Grande de Miguel Torga, e só não o fez por não ter obtido autorização do autor, atitude explicável para todos quantos não desconhecem em que abismos de misantropia este se confinou nos últimos anos [...] a justificar, e cada vez mais, o desinteresse que Torga e a sua obra (do passado) merecem nas gerações hodiernas.”