Acerca da edição de 1966 da Filosofia na Alcova - Parte IV
A seguir, Luiz Pacheco falava do Sade com sabor local. Depois de uma dedicatória a Natália Correia, “presença portuguesa no Portugal de hoje”, apanhava de imediato o tom que é seu e voltava a dedicar o prefácio (agora no próprio texto) ao Dr. Arnelo Manso, juiz que em tempos, numa audiência da Boa-Hora, tivera o “carinho” de o esclarecer quanto a um ponto assente do bom comportamento em português: “a libertinage neste paíxe” O Dr. Manso falava axim) “inda num é permitida...”
Muito mais adiante – avaliados alguns sintomas sadianos que aí correm trocados noutras moedas e por outras roupas, dizia: “Quer o Meritíssimo Dr. Manso queira ou não queira, o Cardoso Pires preferia o Laclos, o Casanova(1), quer as autoridades francesas queimem es edições do Pauvert(2) – O Sade está aí, digo tudo; o Sade está entre nós. Digo o mais grave: o Sade está em todos dentro de nós.” Não tivéssemos ilusões, prosseguia Pacheco, aquela edição de Sade em português não aumentaria o sadismo “do nosso povo, nem a sua devassidão. Porque, para dizer tudo, somos um povo cruel, somos um povo devasso”. Talvez viéssemos a ser, com a leitura meditada daquelas páginas , “depois um pouco mais, ou uns tantos mais, libertinos”.
E continuava: ”Um povo cruel? Está à vista. Há provas, até há fotografias horripilantes. E com uma razoável tradição de crueza: leiam O Encoberto de Sampaio Bruno, e ali encontrarão matéria de espantar, de como o lisboeta da época assistia regalado, com certo gáudio, aos autos-da-fé na Ribeira.
“Um povo devasso? Em terras de Santa Maria?! Lendo avidamente ainda A Rosa no Adro, As Pupilas do Senhor Reitor, idílicas aguarelas da nossa amorosidade rural?! Pois leiam um artigo do Camilo, a gozar o bom do Júlio Dinis, intitulado A Moralidade das Aldeias. Vão lá, não como turistas, de passagem, mas lidem com eles e elas. E não caio na demagogia de carregar, em trâmites de luxúria, nas classes altas (digo: do dinheiro) que ao contrário dos livrecos neo-realistas não são mais devassas do que as baixas (digo: os pobretanas). Trata-se duma refracção da inveja ou do distanciamento ou ignorância: a gente do dinheiro perde tanto tempo a pensar nele que por vezes nem arranja um quarto de hora livre para gozos rabelaisianos. São castos por dever de ofício. Gentinha altamente perigosa, estas criaturinhas castas!
Muito mais adiante – avaliados alguns sintomas sadianos que aí correm trocados noutras moedas e por outras roupas, dizia: “Quer o Meritíssimo Dr. Manso queira ou não queira, o Cardoso Pires preferia o Laclos, o Casanova(1), quer as autoridades francesas queimem es edições do Pauvert(2) – O Sade está aí, digo tudo; o Sade está entre nós. Digo o mais grave: o Sade está em todos dentro de nós.” Não tivéssemos ilusões, prosseguia Pacheco, aquela edição de Sade em português não aumentaria o sadismo “do nosso povo, nem a sua devassidão. Porque, para dizer tudo, somos um povo cruel, somos um povo devasso”. Talvez viéssemos a ser, com a leitura meditada daquelas páginas , “depois um pouco mais, ou uns tantos mais, libertinos”.
E continuava: ”Um povo cruel? Está à vista. Há provas, até há fotografias horripilantes. E com uma razoável tradição de crueza: leiam O Encoberto de Sampaio Bruno, e ali encontrarão matéria de espantar, de como o lisboeta da época assistia regalado, com certo gáudio, aos autos-da-fé na Ribeira.
“Um povo devasso? Em terras de Santa Maria?! Lendo avidamente ainda A Rosa no Adro, As Pupilas do Senhor Reitor, idílicas aguarelas da nossa amorosidade rural?! Pois leiam um artigo do Camilo, a gozar o bom do Júlio Dinis, intitulado A Moralidade das Aldeias. Vão lá, não como turistas, de passagem, mas lidem com eles e elas. E não caio na demagogia de carregar, em trâmites de luxúria, nas classes altas (digo: do dinheiro) que ao contrário dos livrecos neo-realistas não são mais devassas do que as baixas (digo: os pobretanas). Trata-se duma refracção da inveja ou do distanciamento ou ignorância: a gente do dinheiro perde tanto tempo a pensar nele que por vezes nem arranja um quarto de hora livre para gozos rabelaisianos. São castos por dever de ofício. Gentinha altamente perigosa, estas criaturinhas castas!
“Podia trazer aqui casos quase incríveis da vida dos campos, onde se desconhecem os nomes técnicos, clínicos, às coisas, mas as fazem. E, para mim, são estes os melhores: porque as fazem. Na inocência animal, na força imediata dos instintos.”
(...)”Povo devasso: à beira da animalidade ou do vício, portanto. Mas também isso tem o seu lado belo: um povo que não se deixou castrar em séculos e séculos duma religião castradora (e o Padre Amaro é repugnante não por fornicar com a Amélia, que era da ordem natural das coisas, mas por obrigá-la ao aborto, por perdê-la com medo das consequências sócio-económicas da sua ligação).”
E Pacheco terminava assim: “Voltando ao Sade: leiam-no. Não se masturbem mais do que o suficiente para poderem ainda ficar depois o suficientemente lúcidos para o apreciarem e meditarem para fora e muito acima da pornografia. O Sade também ensina a pensar, a conversar, a desfibrar em nós e perante os outros molas ocultas que somos ainda nós, quer saibamos quer não, quer o queiramos quer os detestemos. Bifando ainda ao Blanchot: ´Não diremos que o pensamento de Sade seja viável. Mas revela-nos que entre o homem normal que encerra o homem sádico num impasse e o sádico que faz desse impasse uma solução, é este que sabe mais e melhor acerca da verdade e da lógica da sua situação e que possui dela uma inteligência mais profunda, a ponto de poder ajudar o homem normal a compreender-se a si próprio, ajudado-o a modificar as condições de toda a compreensão. Na alegria da comunicação com o Outro que só o sexo permite, só na cama se totaliza, porque é (quando é) a posse e a entrega absolutas. A nossa verdade: in sexu veritas.”
(continua)
(...)”Povo devasso: à beira da animalidade ou do vício, portanto. Mas também isso tem o seu lado belo: um povo que não se deixou castrar em séculos e séculos duma religião castradora (e o Padre Amaro é repugnante não por fornicar com a Amélia, que era da ordem natural das coisas, mas por obrigá-la ao aborto, por perdê-la com medo das consequências sócio-económicas da sua ligação).”
E Pacheco terminava assim: “Voltando ao Sade: leiam-no. Não se masturbem mais do que o suficiente para poderem ainda ficar depois o suficientemente lúcidos para o apreciarem e meditarem para fora e muito acima da pornografia. O Sade também ensina a pensar, a conversar, a desfibrar em nós e perante os outros molas ocultas que somos ainda nós, quer saibamos quer não, quer o queiramos quer os detestemos. Bifando ainda ao Blanchot: ´Não diremos que o pensamento de Sade seja viável. Mas revela-nos que entre o homem normal que encerra o homem sádico num impasse e o sádico que faz desse impasse uma solução, é este que sabe mais e melhor acerca da verdade e da lógica da sua situação e que possui dela uma inteligência mais profunda, a ponto de poder ajudar o homem normal a compreender-se a si próprio, ajudado-o a modificar as condições de toda a compreensão. Na alegria da comunicação com o Outro que só o sexo permite, só na cama se totaliza, porque é (quando é) a posse e a entrega absolutas. A nossa verdade: in sexu veritas.”
(continua)
#0 #1 #2 #3
(1) Depois de declarar publicamente a sua admiração por Sade (em 1958), Cardoso Pires começou a preparar A Cartilha do Marialva e preferiu, na esteira de Vailland, ignorar o marquês como libertino. Luiz Pacheco chama a esta omissão “calinada da grossa”. É ,porém, verdade que a componente patológica da vida sexual do marquês não serve o retracto do libertino com os contornos escolhidos pelo referido estudo.
(2) Terá de entender-se este “queimar” num sentido figurado. Enquanto Portugal queimava realmente livros, A França limitava-se a decidir entraves à divulgação de algumas obras de Sade. Por exemplo, a edição Pauvert, de Juliete só foi permitida na versão de luxo, encadernada, para restringir a sua circulação; algumas edições de bolso 10/18 tinham de anunciar na capa a restrição de venda a menores; outras obras foram mesmo proibidas em colecções populares. Claro está que houve “habilidades”: parece que nunca chegou a ser notado, na França, que La Philosophie dans le Boudoir começou a ter, na colecção 10/18, apenas o seu nome alternativo Les Instituteurs Immoraux que não constava do index fornecido aos fiscalizadores e, assim, “passava”.
(1) Depois de declarar publicamente a sua admiração por Sade (em 1958), Cardoso Pires começou a preparar A Cartilha do Marialva e preferiu, na esteira de Vailland, ignorar o marquês como libertino. Luiz Pacheco chama a esta omissão “calinada da grossa”. É ,porém, verdade que a componente patológica da vida sexual do marquês não serve o retracto do libertino com os contornos escolhidos pelo referido estudo.
(2) Terá de entender-se este “queimar” num sentido figurado. Enquanto Portugal queimava realmente livros, A França limitava-se a decidir entraves à divulgação de algumas obras de Sade. Por exemplo, a edição Pauvert, de Juliete só foi permitida na versão de luxo, encadernada, para restringir a sua circulação; algumas edições de bolso 10/18 tinham de anunciar na capa a restrição de venda a menores; outras obras foram mesmo proibidas em colecções populares. Claro está que houve “habilidades”: parece que nunca chegou a ser notado, na França, que La Philosophie dans le Boudoir começou a ter, na colecção 10/18, apenas o seu nome alternativo Les Instituteurs Immoraux que não constava do index fornecido aos fiscalizadores e, assim, “passava”.
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