Saturday, March 10, 2007

Recensão crítica à Antologia do Conto Abominável

Publicada do Jornal de Letras e Artes (nº 273, Janeiro de 1970) assinada por M. C. (Mário Cesariny?).

ABOMINÁVEL

O recente aparecimento de uma antologia do conto abominável (Ed. AFRODITE) sugere algumas reflexões sobre o critério adoptado na selecção das histórias e relativamente à possível e imponderável intervenção dos textos apresentados.
Uma concepção objectiva da realidade objectiva é apenas uma forma de visão, cujas limitadas dimensões se vão alargando à medida em que aquilo que em nós era suspeita acaba por se integrar no quotidiano. O abominável quotidiano exige uma resposta reflexiva. E os termos dessa resposta impõem uma capacidade de assimilação – executada – de formas diversas, de formas diferentes, de níveis vários da realidade. Qual o poder de intervenção do abominável perante a inconsciência denominada por alguns (bastantes) sociólogos como consciência colectiva? É um poder relacionado com a individualidade. Os massacres são reais – objectivamente reais. A brutalidade é a norma de competição na sobrevivência. Mas em relação aos agregados passa despercebida. O impacto da crueldade, da abominação (que implica a admissão de valores morais) é sentido por cada indivíduo. O valor da denúncia da abominação consiste exactamente em provocar, em cada um, certa reacção perante a sua imagem, ou, melhor, perante aspectos ainda indeterminados na sua imagem. Que a maioria dos contos desta Antologia do Abominável nos seja aparentemente estranha é facto que provém apenas da superficialidade dos mitos comuns e menores que aceitamos para uma maior facilidade vivencial. Tudo se passa ao lado, com o outro.
O horror acontece ao vizinho, quase sempre pouco próximo, despreocupadamente esquecível. Assistimos ao abominável com a tranquila consciência duma imunidade provável e da ausência pessoal de culpa. E quem ousa transgredir tal modo de vida (?) ou desmascará-lo é atirado para fora do jogo ou encarnado como inventor de futilidades, mais ou menos escabrosas, anormais. A leitura das páginas desta antologia pode divertir aqueles para quem a literatura é um onanismo um tanto requintado, erudito, inconfessado. Mas pode também alargar o conhecimento que possuímos do nosso potencial de destruição e de ódio. É contudo necessária uma atitude de liberdade atenta perante as palavras, o espelho que constituem, onde se reflecte o universo obscuro das hipóteses abomináveis que nos são subjacentes.
É de estranhar a omissão de Franz Kafka neste volume. Mas talvez que as proporções do livro – dependentes das intervenções a elaborar – não consentissem a inclusão de textos um pouco mais extensos. Além disso, seleccionar é estabelecer um critério, sempre discutível. No entanto parece que a presença de Kafka nesta recolha antológica contribuiria para reforçar a sua agressividade positiva.
A desfiguração do homem, a sua submissão aos processos de luta pela vida institucionalizados através do assassinato, da deformação, das mutilações, das torturas, da escravização, da prepotência, não pertence ao domínio da intervenção gratuita para entretenimento das horas vagas. Todavia cabe ao domínio da invenção explorar o paralelo entre o acontecido e a zona incógnita das capacidades latentes da pessoa humana. Se as histórias abomináveis se aproximam frequentemente do humor negro é porque em ambos os casos a fantasia abre campo à virtualidade de nos concebermos em situações que correspondem a desejos ocultos, vinganças frustradas, aspirações afundadas num subconsciente cuja configuração é já o resultado de uma desfiguração inicial:
- Esta maneira de vivermos(?).
Sabemos quanto entre o real e o imaginário a distância é acidental, de perspectiva. Por isso que estes contos do abominável agora apresentados em língua portuguesa contribuem para acentuar ao significado das monstruosidades à nossa vista todos os dias, nas circunstâncias de uma normalidade tanto mais aberrante quanto ultrapassa de facto qualquer divagação no campo da irrealidade.
Desde Não esperavam outra coisa de Dino Buzzati, passando por O massagista negro de Tenesse Williams até As formigas de Boris Vian (três dos contos mais notáveis da colectânea), encontramos repetidamente a intenção de uma proposta: a de que por parte da violência em nós contida tudo é de esperar.
Como pertinentemente refere Vítor Silva Tavares no seu prefácio
«existe no imaginário toda uma infraestrutura realista, mais o que se dirige à sensibilidade e à inteligência crítica de cada qual».
Imaginário como forma de expressão e não como forma de solipsismo. A abominação reside em nós e as fronteiras entre a ficção e o real são-nos dadas fundamentalmente pela impossibilidade circunstancial de efectivarmos até às últimas consequências os nossos impulsos em direcção à loucura (esperemos um pouco e talvez algumas bombas hiper-super-qualquer-coisa venham confirmar - inutilmente – esta asserção). Não nos resta sequer o direito de afirmar que as advertências faltaram. Acontece que a revolta não vai além do umbigo e tudo o mais é aleatório. Coma bem, durma sossegado, seja feliz. E se por acaso for vítima de alguma desgraça, trata-se de um engano imprevisível, destinado ao companheiro do lado, um abominável incidente que por distracção a inteligência x ou o senso divinatório – não registara com a devida antecipação.
A ficção serve-nos de aviso, quando assume a forma de uma agressão aos paradigmas que utilizamos para justificação da existência falseada desde os seus fundamentos gregários. A linguagem do delírio põe à nossa disposição alguns elementos para verificação do estado de doença de uma sociedade onde o indivíduo é utilizado como coisa, pretensamente porque tal processo o beneficiaria, torna melhores as suas condições de subsistência. A linguagem do delírio conduz a uma lógica irrefutável nos seus termos: quem não têm cabeça, não paga nada. Cortem-se as cabeças e os problemas económicos (e os outros) estarão resolvidos. Ou então – e dentro da mesma linguagem delirante – continuemos a usar as grandes palavras, (Amor, Liberdade, Paz, Conhecimento, etc., etc.) pois que, só por serem pronunciadas, tudo solucionam.
Há que referir, no que diz respeito ao aspecto formal, o cuidado do antologiador, na apresentação propriamente literária dos textos. Uma língua escorreita, sem o vício retórico, bem rara na maior parte do que por aí se produz para consumo dos leitores portugueses, habituados a absorver todas as beberragens, contrafacções e mistelas.
Que existem omissões – é verificável. Mas não se exige de um antologia que ela englobe a totalidade do que se pode incluir no critério que a determina.
O volume, tal como está, é suficientemente contundente (ou divertido, para quem assim o queira ler). E eficaz, como proposição para meditações sobre a interferência do irracional na nossa maneira de estarmos aqui.