Luiz Pacheco a favor de Sade
O prefácio que Luiz Pacheco escreveu para a edição da Filosofia na Alcova.
O SADE AQUI ENTRE NÓS
para a Natália Correia,
uma presença europeia no Portugal de hoje
«...puis-je savoir, messieurs. Dis-je, en m´adressant au cercle, lequel de vous est le duc de Cortéreal ?…
- Que veut-elle dire, dit le premier qui avait parlé, et où va-t-elle chercher ici le duc de Cortéreal ?…
- Quoi ?… ce n´est point chez lui ?…
- Les innocentes, dit de second comme on les a trompées… Apprenez que vous êtes ici chez le premier corrégidor de Lisbonne... Le voilá, continua-t-il, en montrant le plus âge des quatre; il se reunit ici avec trois de ses amis, gens de justice ainsi que lui, à dessein de s´amuser des petits imbéciles qui, comme vous, nous tombent parfois sous la main.
- Mais cependant voilá nos malles, dit Clémentine; est-il possible que ceux qui sont fait pour mantenir l´ordre aient pu le troubler à ce point!...»
(do episódio lisboeta de Aline et Valcour
ou le Roman philosophique, publicado por Sade em 1795).
Pedem-me um prefácio sobre Sade, sete páginas máquina prazo dez dias, para uma tradução portuguesa da Philosophie dans le Boudoir. Pelos limites do espaço e tempo consignados pela entidade convidada (eu; emparceirado com o David que faz ou fez outro prefácio anti-Sade), o Leitor inteligente já prevê o género de prefácio que lhe vou atirar: uma prosa humorística, um sadismo caseiro, inofensivo, literário, bonacheirão, que gostosamente daqui ofereço ao Meritíssimo Dr. Arelo Manso, o qual teve o carinho de me prevenir, em audiência na Boa-Hora, que «a libertinage neste paíxe (ele fala axim) inda num é permitida...». Depois, um prefácio a defender o Sade ao pé dum outro contra ele, a não ser uma montagem erudita de textos e glosas de textos (do que se encarregará por certo o David), em sete páginas máquina sete prazo dez dias dez, terá de exprimir-se num resumido depoimento. Por que sou eu a fazê-lo? que títulos me darão tal cabimento, subida responsabilidade? Um apenas agora me ocorre: ter sido, ao que suponho, o primeiro editor português dum texto do Sade, e nessa suposição vai muita honra para mim, embora o texto fosse pequenino, numa tradução cuidada, a edição bonita. Honra minha: porque já havia Sade publicado e lido em 1820. E para depois, em 1870, essa geração literária, e em 1910 com gritos à Libârdade, e por aí adiante – até ao libelo proibitivo do Sr. Dr. Manso, meu Meritíssimo Juiz amigável, e da Moralzinha que ele representava, defendia, propagandeava, assumia, lá sentado no seu espaldar e do muito mais que estava por detrás dele. E não li, nem sei mesmo se haverá, referências, influências manifestas, traduções ou tentativas de publicação de qualquer obra do Sade em Portugal (sadismo, sim, mas já falaremos). E no Inverno passado achei-me a ler um estrudo sobre libertinagem e esse tipo do «libertino» nacional comum, que é o marialva, do meu querido Amigo José Cardoso Pires (rigorosamente para Cardoso Pires e para mim, «marialva é o antilibertino português, privilegiado em nome da razão de Casa e Sangue, cuja configuração social e intelectual de define, nas suas tonalidades mais vincadas, no decorrer do séc. XVIII. No convencionalismo popular (ou antes pequeno-burguês) marialva é o fidalgo (forma primitiva de «privilegiado») boémio e estoura-vergas. Socialmente será outra coisa: um indivíduo interessado em certo tipo de economia e em certa fisionomia política asente no irracionalismo». Cf: «O machismo marialva passou avir à cidade com frequência «porque com o automóvel deixou de haver distâncias». E como o machismo marialva não tem diálogo amoroso (por impotência espiritual) nem técnica de sedução (por impotência intelectual), há que suprimir este entreacto necessário ao contacto amoroso. Daí a prostituição e a mulher de cabaré», comentário de António Alçada Baptista, no prefácio a Feira Cabisbaixa, do O´Neill. Pois para esta devassidão comercializada, é o Dr. Manso mai-la sua Moralidadezinha um perfeito cegueta!), onde não me lembra de ter visto sequer citado o nome de Sade um só vez; mas espero que o José Augusto na próxima edição dedique ao Divino Marquês ao menos duas palavrinhas... que antes do Laclos e do Vailland já o Sade tinha feito e escrito muita sadice, e não confunda o Leitor com sandice, apesar de ser fácil (como se viu) dar o Sade por louco e metê-lo no hospício: é o costume, quando os loucos ou pior os génios-aloucados dizem, fazem e mais perigoso: escrevem de acordo com isso coisas incómodas que todos trazem escondidas ou consideram mais catita (e prudente) disfarçar para dentro ou no segredo das alcovas. Quando muito, contar numa ronda de amigalhaços, um tanto bebidos todos. Revelar ao psiquiatra. Mas ocultar, ocultar o mais possível no reverso da lapela, como é dos regulamentos em certos sadistas contemporâneos que nós conhecemos à paisana.
Reatando e porque já me perdi em divagações fora do tema (ou não?):
Li pouca coisa do Sade, como talvez toda a gente; li alguma prosa sobre ele e do que recordo agora, das mais asnáticas uns parágrafos do Egas Moniz n´A Vida Sexual e um estudo muito embrulhado de Simone Beauvoir (em Priviléges). A sério, li um magnifico trabalho de Maurice Blanchot num Temps Moderns antigo que não consigo descobrir entre a minha papelada ou já vendi a granel, e foi republicado na colecção Arguments, sob o título La Raison de Sade. Esse é que era o prefácio que esta edição merecia, mas não talvez para Portugueses, ai de nós! Vamos, pois, ao prefácio que pedem com pressa a Luiz Pacheco e é o que ele pode e sabe e quer escrever, com gosto, com a raiva toda e alerta. E neste aviso já lá vão três páginas máquina. Óptimo!
Quem é, o que vale, que força terá, em que luta se inscreve, agora e aqui, para nós, Portugueses e Portuguesas, o Sade, uma tradução do Sade (registro: duma obra fundamental do Sade), decerto numa edição limitada e dispendiosas? Eis o primeiro problema a encarar, eis a primeira pergunta que me faço e vos faço. Falando com Fernando Ribeiro de Mello, há meses, sobre este mesmo assunto, recordo ter-lhe dito que uma tradução da Filosofia, a qual como trabalho literário achava (eu) difícílima, não iria muito longe. Precisando: iria pouco mais longe (em termos da sua projecção numa possível clientela) daqueles mesmos que leram o original. O Zé Povinho, que sabe ler e ou gosta de ouvir ler, tem A Marca dos Avelares, que nunca li, mas me dizem ser um poucochinho sadista; e, por acaso, ainda há dias me passou pelos olhos uma colectânea de textos mimeografados, (ilustrada com textos escabrosos) com uma espécie de pastiche nasalado: Um primo e duas primas... Em suma: aquilo que o portuguesinho lúbrico é capaz de produzir em tal matéria, está por culpa sua e duns tantos que nós sabemos apto a gostar, a deleitar-se sem ou sem masturbação por ela. Para subir até ao Blanchot ainda teremos alguns milhões de nós (em que me incluo) de comer muita broa, e das nossas Faculdades de Letras saem licenciados e, até, possíveis doutorandos que arejadas, para lhe meterem o dente (no Sade, acima da pura pornografia que nele há; no Blanchot, àquele alto nível de interpretação crítica). Mas vai sair agora uma tradução? Parabéns, parabéns a todos, parabéns a Você, Editor!
Quer o Meritíssimo Dr. Manso queira ou não queira, quer o Cardoso Pires lhe prefira o Laclos, O Casanova, quer as autoridades francesas queimem as edições do Pauvert – o Sade está aí, digo tudo: o Sade está entre nós. Digo o mais grave: o Sade está em todos dentro de nós. Foi essa afinal a sua grande revelação: um novo segredo humano descoberto, o homem contemplando-se numa dimensão mais real no fundo dos fundos que é o abismo da nossa alma. Escreve Gilbert Lely: «a uma centena de anos de Krafft-Ebing e Freud, «Os 120 Dias de Sodoma» facultaram-nos uma descrição sistematizada das anomalias sexuais e justificam, por isso, o relevo que o mundo esclarecido conferiu ao nome do autor, impondo o termo, sadismo à mais grave dessas psicopatias». Mas depois de Freud, o sadismo como força constitutiva da natureza humana, manifestação do motor que é a líbido, não pode ser ignorado e a gente de bom-tom fixou-lhe o nome; ela e a outra gentinha praticam-no e deixe-me que o confesse: fazem muitíssimo bem. Mas antes de irmos mais longe, de tentarmos distinguir o sadismo que o Sade propõe doutro género de sadismos, falemos do homem.
Na minha edição barata do «Diálogo entre um Padre e um Moribundo», havia um rosário de datas e factos, em que propositadamente mencionei todos os dados que o revelam um grande senhor do Antigo Regime, um feudal de boa formação religiosa, uma figura da casta social e da estirpe intelectual dum Gilles de Rais, companheiro de armas de Joana d´Arc. Um tipo de «marialava» provençal, não boçalizado e animalesco como os nossos pacóvios fidalgos de solar, mas «um homem excepcional tanto pelo seu destino como pelas suas preocupações», sublinho no Blanchot. Eivado de racionalismo, ateu, atento ao seu tempo, intervindo nele, progressivo e tão lúcido (adentro das suas obsessões) que soube logo ver que a Revolução estancara, - daí essa esplendorosa diabrite que é o grito Cidadãos, ainda mais um esforço... Sim, sim, ainda mais um esforço, e grande! Não apenas empurrar para fora uma classe (a dele, na origem), cortar muitas cabeças e erguer outra classe, outras cabeças ( e isso já foi muito). Mas a revolução permanente, isto é, a luta continuada pela libertação do homem, que deve começar por cada um em si, mas pode ser ajudada (ou contrariada) de fora, pelos outros.
Libertação contra a servidão de Deus, contra a ideia-pesadelo de Deus e dos seus acólitos terrestres, e por essa os Enciclopedistas deram o primeiro grande encontrão. – Écrasez L´infâme – e talvez chamem por isso satânico ao riso de Voltaire; libertação contra a opressão, não apenas o alargamento dos direitos (o que foi bem bom) a uma nova classe mais vasta e já não privilegiada em nome da razão de Casa e Sangue, mas ainda aqui houve uma paragem e daí que Marat e, principalmente, Babeuf, sejam geralmente relegados para segundo plano nos manuais porque também queriam ainda mais um esforço no sentido da libertação económica; tão-pouco, séculos mais tarde, a fórmula a cada um segundo as suas necessidades (novo gigantesco passo, sem dúvida) conseguiu evitar ao que consta a formação duma das sociedades mais puritanas do nosso tempo. Sade pregava mais um esforço e foi por isso mesmo que passou trinta anos de vida encafuado em prisões, sob quatro regimes diferentes, sucessivos, inimigos cruéis uns dos outros, da Realeza à Revolução, ao Terror, ao Consulado; e que a sua obra (uma dúzia de romances, na sua maior parte de vastas dimensões, uns sessenta e tal contos e novelas, duas dezenas de peças de teatro e opúsculos diversos) continui no Inferno das Bibliotecas e cerca de uma quarta parte dos seus manuscritos fosse, com o consentimento da família, lançada às chamas pela polícia do Consulado, do Império e da Restauração. Até parece que queria ser preso (cito de memória), escreve a Beauvoir, um tantinho pateta neste passo. Queria ser preso!... Mas alguém quer ser preso?! E logo na Bastilha , logo num hospício de loucos... (era Beauvoir, para seu castigo, que merecia o Nobel. Ou presa).
O que levou Sade às jaulas dos seus diversos carcereiros foi ser um libertino. Tal como o nosso Bocage, seu contemporâneo, (1) ao escrever a «Pavorosa Ilusão da Eternidade», (2) Libertino, libertinagem. Que é isto? Na Cartilha de Marialva, Cardoso Pires (salvo a omissão do Sade, o que considero calinada grossa) disseca com inteligência os termos, as situações que os definem, os grandes exemplares humanos em que se retrata, aliás seguindo a lição de Vaillant; no Laclos par luimemê, por acaso aprendi muito. O libertino não é um lúbrico, nem um devasso. Não o é apenas, embora a prática da libertinagem contenda com o sexo. Seres devassos, tarados sexuais, perigosamente devassos: recordai a indignação de Clémentine, na epígrafe do texto:«é lá possível que os mesmos a quem cumpre manter a ordem, a consigam alterar a este ponto!...». O libertino não é apenas um homem da vida amorosa, intensa ou desordenada, mas algo mais (e o Meritíssimo Magistrado do Juízo Criminal da Boa-Hora sabia-o, com certeza; daí que me tivesse avisado, daí o espaldar donde agora sentencia). É o ateu irredutível; é o que faz da sua vida amorosa um espectáculo – por atitudes, palavras ou escritos; é o que gosta dela, em suma, por isso o proclama. É o que transforma essa experiência muito acima do prazer animal num jogo calculado, numa técnica da sedução, numa aposta vital. E é um tipo inconveniente, um sem papas-na-língua (não um fala barato) porque falando com os outros e dos outros é de si e da sua Bela Vida que vai falando sempre. Porque, eis a chave, o libertino ama o amor.
O Cavaleiro de Oliveira, Bocage foram assim; eu sou à minha maneira um libertino também. E devo confessá-lo: conheço ou conheci gente devassa, libertinos muito poucos. Ia citá-los, os seus nomes não enchiam duas linhas, não vale a pena nem quero que julguem (eles próprios talvez não) que os estou aqui a apontar à Moralidadezinha ambiente.
Mas tudo isso ainda e apenas releva da polícia dos costumes, dalgum tribunal canónico. O caso é, porém, mais grave. O libertino não quer apenas mulheres ou homens ou mulheres e homens para a cama, O CORPO DO OUTRO; sob qualquer aspecto; fórmula de coito; técnicas eróticas. È um tipo livre e, como tal, porque a liberdade apela pela liberdade, um tipo que quer (queira ver, gostava, precisa de lidar com) gente livre com ele, à sua volta. Logo trata-se duma mentalidade progressiva. Isso o leva, o obriga, lhe exige estar contra todas as tiranias. (Suspendo; não como pára-raios contra as iras do Dr. Manso, mas porque há coisas que devem ser ditas e ditas quanto antes, testemunho que a gentinha mais puritana ou sacripanta em questões que bulam com o sexo que tenho conhecido, eram do tipo progressista, pertenciam ao parece que pertenciam (quem está de fora nunca sabe ao certo) a uma tal «organização ilegal e clandestina» etc., etc. Que uma rapariga casada da tal-e-coisa (dizia-se) foi expulsa (constava) porque a certa altura deixou de gostar do marido e lhe pôs os palitos; e que um dito deixou de gostar do marido e lhe pôs os palitos, e que um dito funcionário solteiro da tal-e-coisa recebia da tal-e-coisa vinte escudos (nos bons tempos em que uma virarda no Bairro Alto custava essa barateza) por semana para por semana para satisfazer as suas necessidades... isto não vi, claro, mas contaram-me. Moscovo era, ou era até há pouco tempo, li não sei onde, uma das capitais maus puritanas do Mundo).
Reatando: estamos quase a chegar ao fim das sete páginas máquina. E faltou quase tudo para dizer, confio no David (mas porque é que este rapaz não gosta do Sade?) em que ele dirá o resto que é o principal. Nem falei do Sade-escritor (mas leiam o Lely, leiam o Blanchot). Nem na acção revolucionária que desempenhou ao absolver as sogra que o perseguiu com uma fereza de que as mulheres Às vezes parece que só elas atingem e da qual só elas detêm o segredo. Leiam a biografia que vem na nossa Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e é um mimo. Leiam o Sade.
O Sade é exemplar, mas não é um bom exemplo. Digo: um exemplo fácil de imitar, que nos alicie a seguir-lhes as passadas: o caminho antolha-se-nos povoado de fantasmas e pesadelos horríveis, desde as aberrações (um painel! e tão variado!) à loucura. No referido estudo de Maurice Blanchot, sublinhemos alguns princípios da moral da Sade: «Tudo é bom quando é excessivo»; outro: «Numa vida perigosa, o que importa é nunca nos falecer a força necessária para ultrapassar o derradeiros limites». Ainda mais um: «Todos esses grandes libertinos que vivem apenas para o prazer, são grandes somente porque aniquilaram em si qualquer capacidade de prazer». Conclusão: o libertino é um solitário. Pessoalmente, do ponto de vista do comportamento intersexual, prefiro o Valmont, o Julião Sorel. Mas deixemos agora o Sade; tratemos do sadismo. Ou antes: dos sadismos.
O homem lobo do homem é verdade muito antiga. O Sade tirou-a cá para fora (como o Freud fez depois com a líbido) e exclusivamente encheu páginas e páginas (teve tempo, coitado! em trinta anos de cárcere; e nem sei como certos nossos escribas conseguem escrever tanto, andando sempre cá por fora e ainda bem! E com vários outros empregos à mistura e ainda melhor!) a demonstrar-nos os infortúnios da virtude, essa perigosa chatice. Ou, elevando o tom e sacando do Blanchot: «Pour Sade, l´homme souverain est inaccessible au mal, parce que personne ne peut lui faire de mal; il est l´homme de toutes les passions, et ses passions se plaisent à tout.» E linhas adiante: « L´homme de l´égoisme intégral est celui qui sait transformer tots les dégoûts en goûts, touts les répugnances en attraits.» («Lautréamont et Sade», pág. 28). E na pág. 41 sublinhemos: «Si le crime est l´espirit de la nature, il ný a pas de crime contre la nature et, par conséquent, il n´y a pas de crime possible.»
A virtude nunca recompensada: não estou de acordo, nisto sou anti-Sade também. A crueldade como fonte de prazer (sexual), como método de conhecimento (próprio ou alheio), como regra de conduta integralmente egoísta: eis alguns dogmas da ética de Sade que repugna aceitar na sua totalidade. Mas o espectáculo quotidiano que o nosso tempo nos proporciona é tal ética ser levada a uma escala que subjuga milhões de indivíduos e já começa a extravasar do globo terrestre para nos girar ameaçadoramente por cima das cabeças; ao que temos assistido, confirmando esse fundo feroz em todo o bicho humano (coexistente com o seu simétrico, que é a nossa capacidade de sofrimento e resignação passiva), é à crueldade como técnica de aniquilamento em massa. Estamos instalados n´o tempo dos assassinos, anunciado pelo poeta-vidente. E apesar de poder citar exemplos nacionais, prefiro trazer aqui esse tal Ministério do Interior marroquino, Ufkir de sua graça. A vontade de potência, o desprezo pelo sofrimento alheio se esse sofrimento me dá prazer, os jogos da cama, no seu rol repleto de todas as anomalias, de todos os desvios, de todas as possibilidades humanas, ponhamo-los na conta do Sade; é sadismo, reduzido embora na sua expressão prática a uma fase simples, mais animalesca. Mas quando os assassinos sobem muito alto, como o tal Ufkir, o perigo para nós cresce na razão directa da altura da órbita onde giram e do carburante de que dispõem e da vontade de destruição e ódios que levam dentro e nos atiram para cima. Na resignação com que os olhamos de nariz no ar, na inanidade acautelada com que assistimos às suas façanhas, somos todos cúmplices – duma maneira ou de outra.
Não andei muito por fora, mas vi qualquer coisa e tenho andado cá dentro do País (o nosso) e da Vida (a minha, e outras). Posso dizer duas palavrinhas mais?
Esta edição do Sade em Português não aumentará o sadismo do nosso povo, nem a sua devassidão. Porque, para dizer tudo, somos um povo cruel, somos um povo devasso. Talvez venhamos a ser, agora, com a leitura meditada destas páginas depois um pouco mais, ou uns tantos mais, libertinos.
Um povo cruel? Está à vista. Há provas, até há fotografias horripilantes. E com uma razoável tradição de crueza: leiam O Encoberto, de Sampaio Bruno, e ali encontrarão matéria de espantar, de como o lisboeta da época assistia regalado, com certo gáudio, aos autos-de-fé na Ribeira.
Um povo devasso? Em terras de Santa Maria?! Lendo avidamente ainda A Rosa do Adro, As Pupilas do Senhor Reitor, idílicas aguarelas da nossa amorosidade rural?! Pois leiam um artigo do Camilo, a gozar o bom do Júlio Diniz, intitulado A Moralidade nas Aldeias. Vão lá, não como turistas, de passagem, mas lidem com eles e elas. E não caio na demagogia de carregar, em trâmites de luxuria, nas classes altas (digo: do dinheiro) que ao contrário dos livrecos neo-realistas não são mais devassas do que as baixas (digo: os pobretanas). Trata-se duma refracção da inveja ou do distanciamento, ou ignorância: a gente do dinheiro perde tanto tempo a pensar nele que por vezes nem arranja um quarto de hora livre para gozos rabelaisianos. São castos por dever de ofício. Gentinha altamente perigosa, estas criaturinhas castas!
Podia trazer aqui casos quase incríveis da vida nos campos, onde se desconhecem os nomes técnicos, clínicos, às coisas, mas as fazem. E, para mim, são estes os melhores: porque as fazem. Na inocência animal, na força imediata dos instintos.
Povo cruel, povo devasso: tudo tem seu reverso, a sua face positiva. E como é um povo que eu gosto, nem quero outro, aqui ponho mais duas larachas em estilo filosofante:
Povo cruel: logo sem civilização. Lá iremos a pouco e pouco, talvez ingressando no Mercado Comum... Mas isso quer também dizer, e parece que o faziam desde tempos do Viriato, povo com certo desprezo pela vida, a alheia de preferência, mas também a própria. Ora o desprezo pela vida, de que davam claras mostras os indígenas, os celtiberos ou lá o quem fosse, contra os invasores quaisquer estes fossem, o desprezo pela própria vida quando assim se afirma como manifestação de vitalidade, de sobrevivência duma raça, é coisa muito de louvar. Não é de patriotismo que se trata, que é sentimento facilmente explorável para fins temerosos e mesquinhos. Mas, por acaso, tenho aqui a meu lado Mestre Ortega y Gasset, que me ensinou e pode ajudar a esclarecer a questão: «No he sido nunca nacionalista; pero he sido siempre nacional, y esto significa para mí sentir un entusiasmo siempre renaciente ante las docenas de cosas españolas que están verdaderamente bien y un odio inextinguible hacia todo lo démas que está verdaderamente mal.» E adiante: «Porque no hay duda: se pertenece a un pueblo, se es propiedad de una nación.» E mais adiante:«Nada español me es ajeno; todo forma parte de mí.» (Obras Completas, tomo V, pags. 242, 243). Assim eu, se me dão licença, por cá connosco.
Povo devasso: à beira da animalidade ou do vício, portanto. Mas também isso tem seu lado belo: um povo que não se deixou castrar em séculos e séculos duma religião castradora ( e o Padre Amaro é repugnante não por fornicar com a Amélia, que era da ordem natural das coisas, mas por obrigá-la ao aborto, por perdê-la com medo das consequências sócio-económicas da sua ligação).
La Philosophie dans le Boudoir agora em português talvez por isso venha a ser um livro útil. Não será manual recomendável para meter em mãos infantis ou de adolescentes, embora nos esteja fazendo muita falta urgentemente um livrinho (fácil: basta copiar, adaptar, o que se está a editar nesse campo; no Brasil por exemplo) que ensine aos impúberes o que é isso do sexo, porque forçosamente (e a preciosidade erótica da fêmea portuguesa é grande, nos rapazes segue-lhe os passos; é ver esse casalinho ela de 14, ele de 11, que fugiu há dias para uma turné amorosa e os púdicos dos nossos jornais não contam como eles dormiram...) alguém lho ensinará. E por certo da mais libidinosa maneira.
Voltando ao Sade: leiam-no. Não se masturbem mais do que os suficiente para poderem ainda ficar depois o suficientemente lúcidos para o apreciarem e meditarem para fora e muito acima da pornografia. O Sade também ensina a pensar, a conversar, a desfibrar em nós e perante os outros molas ocultas que somos ainda nós, quer o saibamos quer não, quer o queiramos quer o detestemos. Bifando ainda ao Blanchot: «Não diremos que o pensamento de Sade seja viável. Mas revela-nos que entre o homem normal que encerra o homem sádico num impasse e o sádico que faz desse impasse uma solução, é este quem sabe mais e melhor acerca da verdade e da lógica da sua situação e que possui dela uma inteligência mais profunda, a ponto de poder ajudar o homem normal a compreender-se a si próprio, ajudando-o a modificar as condições de toda a compreesão». Por outros termos, o pensamento de Sade ajuda-nos diante do nosso espelho a medirmos melhor a grandeza da nossa condição. Na alegria da comunicação com o Outro que só o sexo permite, só na cama se totaliza, porque é (quando é) a posse e a entrega absolutas. A nossa verdade: in sexu veritas.
Luís Pacheco
(1) – Sade: 1740-1814: Bocage 1765-1805. Outros libertinos notórios: Laclos 1741-1811, Casanova: 1725-1798, Cavaleiro de Oliveira: 1702-1783. Fazendo as contas, verifica-se (com susto) que lá fora os libertinos atingem idades provetas e cá dentro não passam dos 40. Aí fica o aviso.
(2) – Copio de um calhamaço: «Bocage exalta a Revolução francesa; anciava pela «Liberdade, mãe do génio e prazer», cantava em Bonaparte o novo redentor da natureza», atacava «o feroz Despotismo», o «danado Fanatismo», e não contente de com sanha incansável doestar os frades, negava a eternidade das penas, na célebre epístola que começa «Pavorosa Ilusão da Eternidade».
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