José Martins Garcia na Revista Ler
Ana da Silva entrevistou José Martins Garcia para a revista Ler (n.º 36 – Outono de 1996).
O colaborador de Fernando Ribeiro de Mello fala sobre a sua obra literária, destacando nós excertos onde se refere a livros publicados nas Edições Afrodite:
José Martins Garcia - ... de que serve que um poema meu seja lido em Paris, se eu sou perfeitamente desconhecido na ilha em que nasci? Eu não chego à ilha do Pico. Lugar de Massacre teve talvez mais críticas em língua inglesa (aquando da primeira edição) do que em português.
Ana da Silva - Há mais algum texto seu traduzido? Ninguém lhe fez uma proposta de tradução?
JMG - Só estes poemas foram traduzidos. O Álvaro Manuel Machado pôs a hipótese de traduzir Lugar de Massacre para francês. Chamar-se-ia Lieu de Massacre, mas essa tentativa falhou, e também acho que falha um bocadinho devido ao meu mau feitio. Eu, depois de fazer uma coisa, não me interesso muito por ela. Eu sei que há escritores que cuidam da sua imagem e das críticas que lhes fazem, que vão ver aos jornais se alguém se alguém disse bem ou disse mal, eu deixo tudo isso ao meu editor. Digo ao meu editor: «Eu já tenho o trabalho de escrever o livro, o resto é com você, comercialização, críticas, promoção.» Não tenho muita inclinação para a minha propaganda.
AS - A sua sátira visa alvos contraditórios num confronto entre concepções de vida, entre a moral estabelecida e outra moral subjacente (a das personagens e/ou dos narradores) que sofrem ambas permanentemente de um cepticismo que, talvez, nem sempre chegue a prevalecer?
JMG - Será esse cepticismo generalizável ao conjunto dos meus romances e ao conjunto dos meus contos? Creio que não. No Lugar de Massacre, há um texto de contracapa – na primeira edição – depois foi retirado – que parece ser de um cepticismo ou de um negativismo absoluto, mas não é, porque, numa conversa entre o paciente e o psiquiatra, o paciente afirma que há-de tentar destruir a ordem estabelecida. O que é um aspecto negativo dessa negatividade.
AS - Em Lugar de Massacre, a sátira à inutilidade do massacre de uma juventude numa guerra colonial absurda, que visa essencialmente alguns chefes paranóicos e megalómenos, opõe-se à lucidez da maioria das personagens e sua consciência do absurdo, da inutilidade desse massacre.
JMG - Sim, a grande maioria quer é acabar os dois anos de comissão e ir para casa, ninguém está a fazer nada naquela guerra. A hostilidade e a agressividade vão dar, por fim, aquele estado de coisas, aquela palhaçada que é a guerra colonial.
(...)
AS - A fome, o medo e a morte são três obsessões que deram origem a três títulos de obras a que chamou «a triologia do desespero»: A Fome, O Medo, e Imitação da Morte.
JMG - De facto vivi algum tempo obcecado pela ideia de que há três poderosos inimigos da dignidade humana: a fome, o medo e a morte.
(...)
Quanto a A Fome, também acabei por descobrir – um lapso na minha cultura, todos nós temos – que A fome era o título de um livro de um norueguês, Knut Hamsun. Quem me chamou a atenção para o facto de eu estar a usar um título que tinha sido usado por um Prémio Nobel da Literatura, mas do princípio do século, foi o Vergílio Ferreira, num cartãozinho em letra muito minúscula, dizendo: «Gostei muito do seu livro. Só lamento o título, porque foi usado por Knut Hamsun que, como deve saber, se tornou fascista.»
Eu pensei comigo: «Coitado, Vergílio Ferreira está cheio de boas intenções, mas eu não me vou tornar fascista por ter escrito A Fome.» Depois li A Fome de Hamsun, em francês. O livro não tem grande analogia temática, mas houve uma coisa que me surpreendeu. Em francês, há um indivíduo que é caracterizado como tendo «yeux aïgus» e eu, n´A Fome, uso a expressão «olhos agudos de fome». São estas coincidências que nada podem explicar, porque eu não tinha lido Hamsun.
(...)
A Fome, aliás, é um titulo complexo – não é só a fome material, é fome espiritual, fome de amor, fome de entendimento, fome de solidariedade...
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