Comentário de José Saramago
Excertos do comentário de José Saramago para a edição da História Trágico-Marítima, intitulado A Morte Familiar:
... que representa hoje para nós este longo rosário de morte e sofrimento, despido de todos os prestígios do heroísmo vivo ou da sua exploração literária?
Por quanto entendo, a História de Gomes de Brito é um livro menosprezado que sofre também daquela espécie de maldição mansa que desceu sobre as Crónicas de Fernão Lopes, sobre a Peregrinação, sobre tantas outras obras que vamos encontrar nas esquinas da cultura com todos os rótulos adequados : «clássico», «importante», «fundamental», e que, após a leitura forçada pela obrigação escolar ou estimulada por um interesse acidental, são postas de lado, até nunca mais. Delas é preciso falar para que fique claro que não se é alheio à literatura herdada dos séculos, mas fala-se com aquele ar de pouco caso que é também receio de que a ocasião exija maior aprofundamento: aí não chegaram os benefícios de qualquer folhear apressado.
A de História Trágico-Marítima é pois um livro desconhecido. Condensa-a uma ficha «cultural» definitivamente catalogada, alinhada de lugares-comuns para uso rápido e descomprometido. Nesse estado de documento a duas dimensões, é muito mais infalível do que seria a leitura verdadeira, com certeza inquieta, talvez demolidora de convicções habituais e de ideias feitas.
Dizer dela que representa a face oxidada do doirado medalhão da descoberta e da conquista, poderia ser, para além da metáfora, um ponto de partida polémico e estimulante. Mas acontece neste caso o que também em muitos outros de igual alternância se verifica: o princípio estabelecido pelos hábitos culturais cobre em excesso a realidade – e oculta-a. E isto é precisamente o que a vida quotidiana luta para fazer à morte: escondê-la, ocultá-la, esquecê-la, se possível. Para a questão em causa (quem foram de facto, que fizeram verdadeiramente por esses mares os portugueses do séc xvi) dispomos até da ocultação por excelência: o triunfalismo de Os Lusíadas.
(...)
São milhares os portugueses, desde o grumete da alfama ao fidalgo de avós godos, que morrem aos gritos nestas páginas; são milhares os escravos que igualmente morrem, mas em silêncio, porque deles não ficou nem o nome nem a voz.
(...)
A expressão do sofrimento é contínua na História Trágico-Marítima. São brevíssimas as pausas neste lamento que se desenrola como uma melopeia infinita, sem esperanças de que a escutem, e que se contenta com ouvir-se a si mesma.
(...)
E é neste ponto que chego a um dos aspectos que mais fundamente me tocam na História Trágico-Marítima: precisamente, a familiaridade da morte. Nos Lusíadas, epopeia oficializada de uma nação largada na aventura do mar desconhecido, a morte é cenográfica, adorna-se de um fundo de deuses complacentes e risonhos, violentos só por necessidade de clímax. Tudo se passa como se já a pátria ali estivesse presente, abençoando os heróis e os mártires, desenhando-lhes estátuas para a reverência da posteridade.
... que representa hoje para nós este longo rosário de morte e sofrimento, despido de todos os prestígios do heroísmo vivo ou da sua exploração literária?
Por quanto entendo, a História de Gomes de Brito é um livro menosprezado que sofre também daquela espécie de maldição mansa que desceu sobre as Crónicas de Fernão Lopes, sobre a Peregrinação, sobre tantas outras obras que vamos encontrar nas esquinas da cultura com todos os rótulos adequados : «clássico», «importante», «fundamental», e que, após a leitura forçada pela obrigação escolar ou estimulada por um interesse acidental, são postas de lado, até nunca mais. Delas é preciso falar para que fique claro que não se é alheio à literatura herdada dos séculos, mas fala-se com aquele ar de pouco caso que é também receio de que a ocasião exija maior aprofundamento: aí não chegaram os benefícios de qualquer folhear apressado.
A de História Trágico-Marítima é pois um livro desconhecido. Condensa-a uma ficha «cultural» definitivamente catalogada, alinhada de lugares-comuns para uso rápido e descomprometido. Nesse estado de documento a duas dimensões, é muito mais infalível do que seria a leitura verdadeira, com certeza inquieta, talvez demolidora de convicções habituais e de ideias feitas.
Dizer dela que representa a face oxidada do doirado medalhão da descoberta e da conquista, poderia ser, para além da metáfora, um ponto de partida polémico e estimulante. Mas acontece neste caso o que também em muitos outros de igual alternância se verifica: o princípio estabelecido pelos hábitos culturais cobre em excesso a realidade – e oculta-a. E isto é precisamente o que a vida quotidiana luta para fazer à morte: escondê-la, ocultá-la, esquecê-la, se possível. Para a questão em causa (quem foram de facto, que fizeram verdadeiramente por esses mares os portugueses do séc xvi) dispomos até da ocultação por excelência: o triunfalismo de Os Lusíadas.
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São milhares os portugueses, desde o grumete da alfama ao fidalgo de avós godos, que morrem aos gritos nestas páginas; são milhares os escravos que igualmente morrem, mas em silêncio, porque deles não ficou nem o nome nem a voz.
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A expressão do sofrimento é contínua na História Trágico-Marítima. São brevíssimas as pausas neste lamento que se desenrola como uma melopeia infinita, sem esperanças de que a escutem, e que se contenta com ouvir-se a si mesma.
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E é neste ponto que chego a um dos aspectos que mais fundamente me tocam na História Trágico-Marítima: precisamente, a familiaridade da morte. Nos Lusíadas, epopeia oficializada de uma nação largada na aventura do mar desconhecido, a morte é cenográfica, adorna-se de um fundo de deuses complacentes e risonhos, violentos só por necessidade de clímax. Tudo se passa como se já a pátria ali estivesse presente, abençoando os heróis e os mártires, desenhando-lhes estátuas para a reverência da posteridade.
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