Saturday, October 03, 2009

Porquê a edição do Mein Kampf?


Em 1976 Fernando Ribeiro de Mello editou em Portugal o Mein Kampf, de Adolf Hitler, criando algum impacto na sociedade portuguesa. O editor surpreendeu e as reacções a tamanha audácia e provocação foram muitas. A edição feita a partir de uma tradução brasileira, teve uma tiragem de 10 000 exemplares, dai que ainda hoje se encontre em alfarrabistas com alguma regularidade, mas com preços cada vez mas elevados.

Quando demos início a este blog, publicámos aqui alguns posts com uma entrevista do editor a António Carmo Luís publicada no livro O Marquês de Sade e a sua Cúmplice, Seguido de Sade em Portugal e Portugal em Sade, das edições Hiena. A páginas tantas o entrevistador questiona Fernando Ribeiro de Mello sobre a edição do livro de Adolf Hitler:

(...)

- Não escreva isso – disse-me o editor, e tinha a voz irritada.

FRM - Ainda era a mesma luta contra o poder. O meu mal foi querer provar, com alguns anos de antecedência, algumas coisas que toda agente agora sabe: os regimes do Leste dividiam a sociedade em classes fortemente hierarquizadas, faziam uma censura feroz às ideias, à liberdade de criação, sob o ponto de vista económico eram uma aldrabice. Tentei dizer isto mas era cedo, quem lia livros preferia acreditar no que lhe convinha.

- Seria preciso chegar ao Mein Kampf de Adolf Hitler? O que tinha ele a ver com os regimes de leste?

FRM - Tinha o seguinte: um discurso praticamente igual, assustadoramente igual. Igual porque discurso caucionador, em todos os regimes totalitários, da necessidade de fazer crer ao povo que a sua dureza é inspirada por princípios nobres e pela vontade de o proteger. Os extremos tocam-se.

- Mas em Portugal já tinha havido eleições democráticas, e a Afrodite insistia nessa cruzada...

FRM - Acha que a situação estava estabilizada? Que já não havia perigo? Lembre-se de que a União Soviética ainda praticava uma política de infiltração, e este canto era muito apetecível como pedra a tomar no xadrez universal.

- Mas era uma estratégia editorial errada. Não basta publicar livros «contra». É preciso haver uma clientela significativa para esse «contra», que suporte essa inspiração editorial. No tempo de Salazar, a Afrodite dirigia-se à vontade de oposição da quase totalidade dos intelectuais portugueses. Nesta segunda fase, os livros publicados não tinham um destinatário suficientemente amplo para suportar os investimentos da edição. Era um suicídio.

FRM - Sempre travei batalhas suicidas, sempre me atirei de cabeça pelas minhas verdades sem medir muito as consequências. Hesitar, seria pressupor uma frieza que eu não tenho, e mau será que um dia venha a tê-la. Editei o Sade quando era impossível editá-lo. O degelo marcelista permitiu alguns Sades sem risco, na Arcádia, na Estampa, creio que na Presença; e depois de não haver censura apareceram dois com linguagem crua, um na & Etc e os volumes de Os 120 Dias de Sodoma. Mas eu editei Sade contra Salazar, com todo o risco que era estar contra ele, editei-o para abalar a censura...