Acerca da edição de 1966 da Filosofia na Alcova - Parte VI
Até que Henrique Parente, funcionário da Judiciária, em 29 de Março resolve apresentar serviço. Teve “a honra de informar “ superiormente, em folha timbrada, que “constava estar à venda e em circulação um livro pornográfico, protótipo da desmoralização, com o título A Filosofia na Alcova.” Era do marquês de Sade. E esclarecia: “tal livro, segundo consta, tem sido (sic) editado por Fernando Ribeiro de Mello, residente na Avenida António Augusto de Aguiar, 3, 2º letra A, nesta cidade”. (O bom agente é, como sabemos, perito em descobrir moradas.)
Datado do mesmo dia houve um despacho superior que não escondia, na letra, na economia das palavras, alguma irritação: “Passe-se imediatamente busca.”
Uma semana depois havia trabalho feito e boa se achava a ocasião – noutro reduto, paredes-meias com o centro do Poder – para serem solicitados mais serviços à diligente Judiciária. O Chefe das Secretaria da Direcção dos Serviços de Censura da Presidência do Conselho tinha a honra (também ele) de comunicar que A Filosofia na Alcova fora proibida de circular no país e aproveitava relembrar dois desacatos anteriores da mesma editora, nessa altura já apreendidos: Manual do Erotismo Hindu e Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. “Muito agradeço a colaboração prestada por essa Polícia a estes Serviços”, concluía ele, solicitando “o favor do envio urgente, de um exemplar de cada um dos referidos livros”. (Dizia-se, realmente, que S. Bento gostava de ler!)
Os movimentos que se concertavam em redor deste Sade com a ousadia de falar em português tornavam-se complexos. Dias antes, já o editor fora ouvido em auto de declarações pelo inspector Jorge Alberto Aragão Seia.
- Queria saber tudo – relembra Ribeiro de Mello. – “Quem é este tradutor Helder Henrique?” Tive de explicar que não existia nenhum Helder Henrique; a tradução fora entregue ao Herberto Helder, que não chegara a fazê-la por razões pessoais. Dera-a por sua vez a outro, meu desconhecido; aquele nome era um pseudónimo de minha inteira responsabilidade. “E os prefaciadores?”, “Convidei-os directamente a escrever um texto com aquele fim.” “E quem é este João Rodrigues, ilustrador? ” O Dr. Seia queria saber as moradas. “Não sei nenhuma morada”, respondi. “Posso encarregar-me apenas de contactar com eles.”
O interrogatório ainda não chegara ao fim.
- Senti que era dever meu declarar-me responsável único pela edição, feita com dinheiro que eu tinha e outro, emprestado. Mas o Dr. Seia não desarmava. “E a tipografia, quanto lhe levou?” “Ainda não sei.” “Em que livrarias o livro foi distribuído?” “ Não muitas, dadas as características da editora e da obra: em Lisboa a Sá da Costa, a Bertrand, a Divulgação, a Àtica, a livraria de Eduardo Rodrigues Pereira; em Coimbra a Almedina; outras na província, que ignoro.” “Quantos exemplares foram colocados?” “Não sei.” Mais tarde fui informado de que tinham sido apreendidos 1267 exemplares da edição de 2000. Para resumir, vi-me obrigado a contactar com os intervenientes explícitos e a dizer-lhes que fossem à Judiciária. Com excepção de Luiz Pacheco (na altura a viver nas Caldas), foram ouvidos na semana seguinte.
Datado do mesmo dia houve um despacho superior que não escondia, na letra, na economia das palavras, alguma irritação: “Passe-se imediatamente busca.”
Uma semana depois havia trabalho feito e boa se achava a ocasião – noutro reduto, paredes-meias com o centro do Poder – para serem solicitados mais serviços à diligente Judiciária. O Chefe das Secretaria da Direcção dos Serviços de Censura da Presidência do Conselho tinha a honra (também ele) de comunicar que A Filosofia na Alcova fora proibida de circular no país e aproveitava relembrar dois desacatos anteriores da mesma editora, nessa altura já apreendidos: Manual do Erotismo Hindu e Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. “Muito agradeço a colaboração prestada por essa Polícia a estes Serviços”, concluía ele, solicitando “o favor do envio urgente, de um exemplar de cada um dos referidos livros”. (Dizia-se, realmente, que S. Bento gostava de ler!)
Os movimentos que se concertavam em redor deste Sade com a ousadia de falar em português tornavam-se complexos. Dias antes, já o editor fora ouvido em auto de declarações pelo inspector Jorge Alberto Aragão Seia.
- Queria saber tudo – relembra Ribeiro de Mello. – “Quem é este tradutor Helder Henrique?” Tive de explicar que não existia nenhum Helder Henrique; a tradução fora entregue ao Herberto Helder, que não chegara a fazê-la por razões pessoais. Dera-a por sua vez a outro, meu desconhecido; aquele nome era um pseudónimo de minha inteira responsabilidade. “E os prefaciadores?”, “Convidei-os directamente a escrever um texto com aquele fim.” “E quem é este João Rodrigues, ilustrador? ” O Dr. Seia queria saber as moradas. “Não sei nenhuma morada”, respondi. “Posso encarregar-me apenas de contactar com eles.”
O interrogatório ainda não chegara ao fim.
- Senti que era dever meu declarar-me responsável único pela edição, feita com dinheiro que eu tinha e outro, emprestado. Mas o Dr. Seia não desarmava. “E a tipografia, quanto lhe levou?” “Ainda não sei.” “Em que livrarias o livro foi distribuído?” “ Não muitas, dadas as características da editora e da obra: em Lisboa a Sá da Costa, a Bertrand, a Divulgação, a Àtica, a livraria de Eduardo Rodrigues Pereira; em Coimbra a Almedina; outras na província, que ignoro.” “Quantos exemplares foram colocados?” “Não sei.” Mais tarde fui informado de que tinham sido apreendidos 1267 exemplares da edição de 2000. Para resumir, vi-me obrigado a contactar com os intervenientes explícitos e a dizer-lhes que fossem à Judiciária. Com excepção de Luiz Pacheco (na altura a viver nas Caldas), foram ouvidos na semana seguinte.
(continua)
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