Wednesday, November 08, 2006

Acerca da edição de 1966 da Filosofia na Alcova - Parte VIII

Ninguém duvidava de que estivesse na forja um processo exemplar e com pretensões a garantir entre os rebeldes um efeito dissuasor que as memórias se encarregariam de alargar por muitos anos; capaz de fazer sentir aos homens da cultura que havia regras em Portugal, insensíveis aos figurinos de uma Europa que parecia preparar-se para novas aberturas e se dispunha, por exigências desmedidas dessa abertura, a alargar os cordões à sua decência.
Viu-se, entretanto, que David Mourão-Ferreita era o que podia chamar-se “um homem de sorte”. O seu prefácio alegara razões e desenvolvera ideias que escapavam por completo ao centro do processo, argumentara incipiências de estilo e estrutura, uma repulsa em nome pessoal pelo universos do autor e pelo vexame que era sentir-se, quando o lia, com muitos bons sentimentos, e tudo isto a Judiciária confundira com as suas próprias razões sem reparar que nunca se perfilhava ali o seu ponto de vista – o crime da divulgação do texto “pornográfico”, o que significava de intolerável ultraje à moral pública. Com este equívoco o seu nome já não figuraria na segunda fase do processo, era arreado da grande encenação de poder que anunciava para breve a sua festa.
Quanto a João Rodrigues, réu indiscutível, não chegou vivo à audiência. Talvez seja difícil explicar a nuvem negra que andava com ele por Lisboa, que lhe soprava angústias e humores de uma grande ferocidade, que a suas horas lhe complicava (sic) o talento com fantasmas que já não iludiam – os fantasmas de quem está por um fio. Poderá arriscar-se que ouviu um segredo insuportável; que foi arrancado ao estirador do seu desenho técnico e compelido a estatelar-se de salto, janela fora, num passeio da idade.
Os arguidos reduziram-se, pois, a quatro quando o Tribunal Plenário julgou este caso de “abuso de imprensa”: estava-se a 19 de Outubro de 1967, um ano e meio decorrido desde a altura em que fora posta a circular a Filosofia na Alcova.
O Tribunal ouviu, ripostou e concluiu o que estava concluído: tratava-se de um texto e de ilustrações “abertamente pornográficas”, “atentatórios da decência, dos bons costumes e da moralidade pública, para além do valor que, sob qualquer outro aspecto literário, se pretendesse atribuir a tal obra.” “Só por um desvio de entendimento, forçado pela necessidade de defesa do que normalmente a moral pública rejeita, se poderia alegar que a divulgação em língua portuguesa daquela obra obedecera a fins culturais.”
“Era de todos sabido que, aos vulgares leitores de semelhantes escritos, não interessava, nem a forma literária do livro, nem o estado psíquico do seu autor, nem o reflexo sua obra como fenómeno de patologia sexual, mas sim e unicamente quanto de lúbrico se continha em suas narrativas, impregnadas de provocante erotismo.
“Apelidar de cultural o fim que ditara a publicação do livro era trair o significado de cultura, na medida em que À sua sombra se conspurcavam princípios morais protegidos por lei, sem se ter em conta o que de digno devia prevalecer numa autêntica e salutar cultura humanista.
“De resto, não estava somente em causa a narração pormenorizada de aberrações e vícios que os seres normais repeliam, mas que os pervertidos sexuais aceitavam e imitavam. A tradução revelava extremos de sujidade próprios de uma obra predestinada a contribuir para a depravação dos costumes, sem respeito sequer pelo decoro da linguagem que sempre foi apanágio de toda a literatura que se diz cultural.
“Os vocábulos usados, da mais requintada obscenidade, eram por tal modo ultrajantes e grosseiros, que nem os dicionários de uso mais vulgar os inseriam, certamente para não ofenderem a moral pública, no sentido em que este conceito era considerado normalmente.
A indignação prolongava argumentos, acusava indecentes as ilustrações do réu falecido, apontava a ineficácia do aviso aos livreiros inserido no livro para concluir que todos os arguidos tinham cometido crime de ultraje à moral pública através da imprensa e o conteúdo da obra era um estendal de matéria ofensiva. Só faltava o fim, a sentença que iria graduar penas pela dimensão dos delitos, estabelecer penitências – em dias de prisão remíveis (calculava-se já) a troco de escudos.
(continua)
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