Saturday, December 09, 2006

Acerca da edição de 1966 da Filosofia na Alcova - Parte IX

O elenco da peça tinha acabado por ser impressionante ao concentrar apenas num acto juizes e acessores, testemunhas bem conhecidas da inteligência portuguesa, advogados de nome sonante. Fernando Ribeiro de Mello fora defendido por Manuel João da Palma Carlos, Herberto Helder por Luís Francisco Rebelo, Luiz Pacheco por Fernando da Rocha Calisto. Por falta de posses, Calado Trindade beneficiaria do defensor oficioso Jorge Sampaio.
As sentenças eram aguardadas com uma expectativa que fazia contas a riscos futuros. Jogava-se nelas o futuro grau de bom comportamento exigido às editoras portuguesas. Acabou por ouvir-se que Ribeiro de Mello, seria condenado a oito meses de prisão substituídos por uma multa de 50$00 por dia, em igual tempo de multa à mesma taxa e a um imposto de justiça de 2000$00; que o tradutor Calado Trindade seria condenado a seis meses de prisão substituídos por uma multa de 15$00 por dia, em igual tempo de multa à mesma taxa e a um imposto de justiça de 800$00.
Quando chegou a vez de Herberto Helder, o Tribunal chamou-lhe «cúmplice». E quanto valia ser cúmplice? Três meses de prisão substituídos por uma multa de 25$00 por dia, em igual a tempo de multa à mesma taxa e a um imposto de justiça de 1000$00.
E a actuação de Luiz Pacheco, prefaciador agravado por jeito muito seu para cometer ofensas e fazer troças que embaciavam a dignidade de altos magistrados do país? Só pelo prefácio, seis meses de prisão susbstituidos por uma multa de 20$00 por dia, em igual tempo de multa à mesma taxa e a um imposto de justiça de 900$00; pela honra do Dr. Arnelo Manso gozado na pronúncia, acusado de «cegueta» quando se travara de devassidão comercializada «mai-la sua moralidadezinha», 10 000$00 (na época, dois fabulosos fatos do «espaço» Lourenço A. Santos) à conta de indemnização.
A Editora Afrodite não emergiu, pode dizer-se, das ondas em que estivera mergulhada. Tentou resistir, manter ares que tinham sido da sua graça. Ainda chegou a tocar-lhe outra saída do mercado – uma subversãozinha que a censura não engoliu e se chamava Antologia do Conto Abominável -, perdeu-se um pouco por outras antologias, uma delas promovida com luso-dalianas atitudes na rua do Cabo (o editor dentro de uma banheira gigantesca com água irremediavelmente fria), divagou por textos portugueses há muito esgotados ou mal conhecidos. Às tantas, subitamente largada na Europa, quis ter outro fôlego de outra inspiração.
- Não escreva isso – disse-me o editor, e tinha a voz irritada.
– Ainda era a mesma luta contra o poder. O meu mal foi querer provar, com alguns anos de antecedência, algumas coisas que toda agente agora sabe: os regimes do Leste dividiam a sociedade em classes fortemente hierarquizadas, faziam uma censura feroz às ideias, à liberdade de criação, sob o ponto de vista económico eram uma aldrabice. Tentei dizer isto mas era cedo, quem lia livros preferia acreditar no que lhe convinha.
- Seria preciso chegar ao Mein Kampf de Adolf Hitler? O que tinha ele a ver com os regimes de leste?
- Tinha o seguinte: um discurso praticamente igual, assustadoramente igual. Igual porque discurso caucionador, em todos os regimes totalitários, da necessidade de fazer crer ao povo que a sua dureza é inspirada por princípios nobres e pela vontade de o proteger. Os extremos tocam-se.
- Mas em Portugal já tinha havido eleições democráticas, e a Afrodite insistia nessa cruzada...
- Acha que a situação estava estabilizada? Que já não havia perigo? Lembre-se de que a União Soviética ainda praticava uma política de infiltração, e este canto era muito apetecível como pedra a tomar no xadrez universal.
- Mas era uma estratégia editorial errada. Não basta publicar livros «contra». É preciso haver uma cientela significativa para esse «contra», que suporte essa inspiração editorial. No tempo de Salazar, a Afrodite dirigia-se à vontade de oposição da quase totalidade dos intelectuais portugueses. Nesta segunda fase, os livros publicados não tinham um destinatário suficientemente amplo para suportar os investimentos da edição. Era um suicídio.
- Sempre travei batalhas suicidas, sempre me atirei de cabeça pelas minhas verdades sem medir muito as consequências. Hesitar, seria pressupor uma frieza que eu não tenho, e mau será que um dia venha a tê-la. Editei o Sade quando era impossível editá-lo. O degelo marcelista permitiu alguns Sades sem risco, na Arcádia, na Estampa, creio que na Presença; e depois de não haver censura apareceram dois com linguagem crua, um na & Etc e os volumes de Os 120 Dias de Sodoma. Mas eu editei Sade contra Salazar, com todo o risco que era estar contra ele, editei-o para abalar a censura...
(continua)