Acerca da edição de 1966 da Filosofia na Alcova - Parte X (última)
- Já reparou que o caso Afrodite acaba por chegar a um impasse que parece ter um paralelo com o próprio drama do marquês e da marquesa de Sade? A Afrodite teve apoio público enquanto publicou escândalos nacionais e agora, o seu actual silêncio, a sua actual reclusão, inspiram um certo enfado, um ressentimento...
- Não tenho grandes hipóteses. O momento editorial é mau, e deixou de haver lugar para o meu antigo papel. Não existe nada que me permita editar perigosamente contra.
- Não sei se conhece a peça de Mishima sobre a marquesa de Sade. Será mau teatro, mas um bom livro. È uma peça que mais parece escrita para ser lida, e muito menos representada. Baseando-se no que é sabido da biografia da marquesa, Mishima não oculta que ela apoiou o marido no bem no mal enquanto ele actuou, enquanto ele cometeu actos que o levavam a sucessivas prisões. Havia nisso uma vitalidade redentora que lhe deu ânimo, que a fez sempre defender os seus desvarios. Depois, o marquês quedou-se tempos infindos encarcerado, escreveu na reclusão textos talvez agressivos mas sem aquele papel imediatamente escandaloso em todo o país que alguns actos seus tinham cumprido. A marquesa desiludiu-se e fartou-se. Na última cena da peça, quando a criada vem anunciar que a Revolução libertou o marquês e ele está à porta de casa para ser recebido, ainda aguenta uma derradeira descrição do seu aspecto.
«Está tão modificado, que até tive dificuldade em reconhecê-lo, diz a criada. Traz roupa de lã escura remendada nos cotovelos, e uma camisa de colarinho tão sujo que comecei por tomá-lo por um mendigo. A descrição prossegue, detém-se na corpulência, nos dentes podres...E a marquesa borda, indiferente.
«Charlotte, a criada, prossegue: - Acabou por perguntar-me se não estava a reconhecê-lo. Sou Donatien, Alphonse, Francois, marquês de Sade.
«E sabe o que é que a marquesa responde?
«Responde isto: - Vai dizer-lhe que se vá embora. Olha, diz-lhe ainda mais isto: que a marquesa de Sade nunca mais voltará a recebê-lo.»
- Com esse paralelo não está a ser cruel de mais para mim, para a Afrodite?
- Disse-me há pouco que o seu papel é irrepetível, se esgotou.
- Por favor... traga a conta – diz o ex-editor ao empregado da esplanada, sem ocultar a pressa que sente em sair dali. Começámos a descer o Chiado.
- Vamos dar uma olhadela à Betrand, ver o que tem na montra – proponho eu, para correr para mais longe algumas nuvens que teimam em baixar e em perseguir-nos Garret abaixo.
- Não posso, estou cheio de pressa.
- Ele – Ribeiro de Mello com dois éles, ex-editor do Kama-Sutra, de poesia erótica, de um Sade a sério – queria lá saber!
Lagos, 1990
- Não tenho grandes hipóteses. O momento editorial é mau, e deixou de haver lugar para o meu antigo papel. Não existe nada que me permita editar perigosamente contra.
- Não sei se conhece a peça de Mishima sobre a marquesa de Sade. Será mau teatro, mas um bom livro. È uma peça que mais parece escrita para ser lida, e muito menos representada. Baseando-se no que é sabido da biografia da marquesa, Mishima não oculta que ela apoiou o marido no bem no mal enquanto ele actuou, enquanto ele cometeu actos que o levavam a sucessivas prisões. Havia nisso uma vitalidade redentora que lhe deu ânimo, que a fez sempre defender os seus desvarios. Depois, o marquês quedou-se tempos infindos encarcerado, escreveu na reclusão textos talvez agressivos mas sem aquele papel imediatamente escandaloso em todo o país que alguns actos seus tinham cumprido. A marquesa desiludiu-se e fartou-se. Na última cena da peça, quando a criada vem anunciar que a Revolução libertou o marquês e ele está à porta de casa para ser recebido, ainda aguenta uma derradeira descrição do seu aspecto.
«Está tão modificado, que até tive dificuldade em reconhecê-lo, diz a criada. Traz roupa de lã escura remendada nos cotovelos, e uma camisa de colarinho tão sujo que comecei por tomá-lo por um mendigo. A descrição prossegue, detém-se na corpulência, nos dentes podres...E a marquesa borda, indiferente.
«Charlotte, a criada, prossegue: - Acabou por perguntar-me se não estava a reconhecê-lo. Sou Donatien, Alphonse, Francois, marquês de Sade.
«E sabe o que é que a marquesa responde?
«Responde isto: - Vai dizer-lhe que se vá embora. Olha, diz-lhe ainda mais isto: que a marquesa de Sade nunca mais voltará a recebê-lo.»
- Com esse paralelo não está a ser cruel de mais para mim, para a Afrodite?
- Disse-me há pouco que o seu papel é irrepetível, se esgotou.
- Por favor... traga a conta – diz o ex-editor ao empregado da esplanada, sem ocultar a pressa que sente em sair dali. Começámos a descer o Chiado.
- Vamos dar uma olhadela à Betrand, ver o que tem na montra – proponho eu, para correr para mais longe algumas nuvens que teimam em baixar e em perseguir-nos Garret abaixo.
- Não posso, estou cheio de pressa.
- Ele – Ribeiro de Mello com dois éles, ex-editor do Kama-Sutra, de poesia erótica, de um Sade a sério – queria lá saber!
Lagos, 1990
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