Monday, August 27, 2007

João Rodrigues entrevistado para o Jornal de Letras e Artes de 15 de Setembro de 1965

Auto-Retrato



«O surrealismo português é um abjeccionismo adulto, com horário e apto a ganhar a vida» - João Rodrigues

Num momento em que o desenho-ilustração ganha uma importância e uma oportunidade de aplicação que não tem paralelo no passado, escasseiam entre nós personalidades capazes de se imporem, capazes de criarem um estilo autónomo e eficaz. Paradoxalmente, João Rodrigues, que faz questão de ter nascido em Lisboa, não encontrou ainda as solicitações que permitiriam a sua afirmação cabal, e que o talento já revelado parecia dever condicionar. Assíduo frequentador do grupo do «Gelo», reduziu a curto período a sua passagem pela Escola Nacional de Belas Arte, que trocou por uma prolongada estadia em Pari, actualmente, comprometeu-se com um grupo «abjeccionista» em formação, a que entregou colaboração a incluir numa revista que, parece, será em breve publicada. Participou na exposição «Desenho», da Casa da Imprensa e colaborou com desenhos em jornais e revistas como: «Jornal de Letras e Artes», «Europa», «Diário Ilustrado», «Almanaque», etc.; realizou capas de livros; os seus trabalhos foram incluídos na antologia «Surrealismo-Abjeccionismo», organizada por Mário Cesariny de Vasconcelos, com quem produziu alguns poemas e «cadáveres-esquisitos», a meias, coligidos na «Antologia do cadáver esquisito». Mas, para quem conheça de perto a sua personalidade e os seus trabalhos ainda não tornados públicos, impõe-se uma realidade: a imaginação e a qualidade dos seus desenho, o humorismo lúcido e feroz que os caracteriza, são insuficientemente conhecidos e mereciam um aproveitamento sistemático e adequado.

- A sua participação no grupo do «Gelo» e a colaboração em algumas actividades desse grupo resultam de uma filiação no surrealismo?
-
Não inteiramente. Para ser surrealista falta-me convicção e ortodoxia. Devo ser considerado, de preferência, um abjeccionista.
-
Pode definir o abjeccionismo e as suas possíveis relações com o surrealismo?
- O abjeccionismo foi definido por Pedro Oom como uma atitude de negação sistemática e auto-repulsa. Há relações de simpatia entre o surrealismo e o abjeccionismo. O surrealismo português é um adjeccionismo adulto, com horário e apto a governar a vida. O abjeccionismo é um dadísmo português, mais concretamente, lisboeta. É uma fatalidade de certa circunstância. Portuguesa, da sua impotência.
-
Mudando de assunto, vou fazer-lhe uma pergunta que talvez o ajude a caracterizar a sua posição. Quais são os escritores que prefere?
-
Vou responder, apesar da sua pergunta me lembrar o «Questionário de Proust». Circunscrevendo-me aos meus interesses mais recentes, citarei Boris Vian que, de modo remoto, até porque francês possui uma concepção abjeccionista da vida. Vejamos o «Outono em Pequim», em que um caminho de ferro, a construir no deserto, terá forçosamente de passar sobre um hotel existente.
-
O desenho interessa-lhe como linguagem autónoma ou apenas como ilustração?
- Como actividade pessoal, não me interessa o desenho puro. Dedico-me ao desenho –ilustração, que consiste no domínio de uma linguagem sacrificada a uma intenção, mesmo quando própria.
-
Quais os desenhadores portugueses que retiveram a sua atenção?
-
Em primeiro lugar, tenho de referir as experiência do Areal. Como ilustrador, considero fascinantes os trabalhos de João Abel.
-
E os estrangeiros?
-
Entre os ilustradores estrangeiros, Gustave Doré continua a ser o caso que me apaixona.
- O humorismo que tem cultivado é condicionado pela sua atitude abjeccionista?
-
O humorismo é, em certa medida, uma fatalidade do meu abjeccionismo profissional. È condicionado pela carência de caminhos preconizada por aquela posição.
-
Como concebe o humorismo?
-
O humorismo consiste numa atitude sistemática de negação e denúncia, que encontrou uma forma eficaz de comunicação. Concebo-o como uma demonstração clara, por absurdo.
-
Que caminho preconiza para a sua actividade futura?
- A minha actividade profissional não me marca como continuidade. Posso ser levado para os mais diferentes caminhos. De resto, não sou capaz de desenhar, actualmente, sem solicitação. Só há actividade artística independente quando não há sentido de auto-crítica. A capacidade crítica torna impossível a realização espontânea e por fazer. A actividade profissional é um acidente e não uma escolha a que nos possamos agarrar.
-
Como explica, então, a contínua realização de desenhos no fundo dos pratos, nos tampos das mesas, nos guardanapos de papel, etc?
-
Só em público desenho sem encomenda. É uma tentativa de participação num ambiente, num espectáculo.
-
O abjeccionismo poderá concretizar-se num movimento colectivo?
-
O abjeccionismo nunca é um movimento colectivo. È um caso pessoal ou, quando muito, o encontro de muitos casos pessoais. Isso não põe em causa a sua oportunidade aqui e agora. É uma atitude nobre de prolongamento vital, cujo, limite prefiro não nomear...

Ilustrações de João Rodrigues para A Filosofia na Alcova, 1.ª edição
























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Das oito ilustrações, apenas aqui apresentamos sete. Do alojador de imagens que utilizamos, foi retirada uma, justificando-se: "This Image Violated Our Terms of Service"!

Entrevista ao pintor João Hogan


Apresentamos mais uma entrevista conduzida por Fernando Ribeiro de Mello para o Jornal de Letras e Artes. O entrevistado foi o pintor João Hogan (1914 - 1988), para o n.º 140 do referido jornal, com data de 3 de Junho de 1964. Na falta de uma fotografia, aqui fica um "Auto-Retrato", ano de 1959, em óleo sobre tela, do Centro de Arte Moderna de Lisboa.

«Não estamos habituados a «encaixar» as decisões dos júris. É difícil conseguir uma humildade que me parece bastante salutar» - diz-nos João Hogan

As numerosas e veementes controvérsias suscitadas pelo critério que presidiu ao Concelho Técnico para a admissão das obras concorrentes ao Salão Primavera deste ano na S. N. B. A., levaram-nos a procurar um artista de situação já firmada no panorama das nossas Artes Plásticas, para dele registarmos as considerações relativas, que pelo seu tom decisivo e definitivo julgamos poder merecer um interesse geral e bastante significativo nesta oportunidade. Sem querermos, por não nos acharmos nesse direito, assumir uma posição de escolha, de concordância ou não, é nosso intuito registarmos oportunamente os pareceres não só de um outro artista, mas dos recusados àquele Salão, como também de um dos elementos do supracitado Conselho Técnico. João Hogan é uma das pessoas indicadas para ouvirmos tanto mais que lhe foi atribuído o prémio «Silva Porto».

Fernando Ribeiro de Mello/Jornal de Letras e Artes – Como considera o nível das obras concorrentes este ano ao Salão da Primavera da S. N. B. A. ?
João Hogan –
Considero que este ano, todas as obras concorrentes foram de muito baixo nível. De ano para ano as obras apresentadas vão baixando de nível. Este foi, no entanto, o mais escandalosamente inferior. E, repare, abranjo nestas considerações também as obras admitidas.
FRM/JAL – Particularmente, acerca das admitidas...
JH – Não poderia ser sem grave prejuízo para o nível do Salão que se registaram ausências como a dos artistas Charrua, Conduto, Alice Jorge, Sá Nogueira, Menez, Matos, Rogério Ribeiro e outros, isto dentro daqueles que é tradicional concorrerem...
FRM/JLA – Quer revelar as suas preferências dentro das obras admitidas?
JH – Gosto de Nikias, mas ali não; gosto do Abel Manta, mas ali não; Palmela, parece-me de todos, o mais identificado com o nível que lhe é habitual.
FRM/JLA – Gostaríamos que nos falasse das obras recusadas e expostas no salão do mesmo nome simultaneamente com as admitidas.
JH –
Não gostaria de falar. Mas dir-lhe-ei que poderiam ter figurado no Salão de Primavera uma meia dúzia dessas obras. Têm um nível muito aproximado das admitida, mas automaticamente dariam razão para a admissão de outras tantas, e assim sucessivamente até à tradicional ausência de qualquer critério. Entre todos os autores recusados, Espiga Pinto ainda é o que me apresenta mais condições para a admissão. Não falo dos mais novos, que me merecem muito respeito quando não admiração, pois creio ainda não terem atingido quanto é necessário e deles é de aguardar. Julgo que não lograram aquilo que procuraram, ou nos querem fazer que procuram. Nota-se-lhes facilmente uma prisão exterior, num ou noutro caso, mesmo um fim restritamente histriónico, pretendendo uma comunicação só pessoal, conseguida (?) a partir de possibilidades de realização que se confinam à técnica de materiais, sem um conhecimento, efectivo de Arte, sem uma procura estética. Assim, concordo que ao proceder-se À admissão dessas obras, ficariam abalados os princípios que orientaram o C. T. E presidiram às suas decisões. Insisto: se há alguns artistas recusados que considero com valor para serem admitidos, as obras que apresentaram este ano não mereciam do C. T. Essa decisão, talvez, exactamente, por serem de nível inferior ao que lhes é conhecido e exigido.
FRM/JLA – Está, então, de acordo com o critério assumido pelo C. T.?
JH –
Não se tendo candidatado autores tão representativos como os nomes já citados, a situação do júri era, precisamente, esta. Com mais material talvez lhe fosse possível, inclusivamente, afirmar melhor os seus objectivos. Em vista desse material, era impossível ao júri ter optado por outro critério, sem risco de desacreditar.
FRM/JLA – Acha que no momento, balizar outros salões, com um critério menos rigoroso ou que o apresentado nesta Salão de Primavera é o mais indicado para qualquer oportunidade futura?
JH –
Acho que, no momento histórico que vivemos, face ao estado presente das nossas Artes Plásticas, não pode haver lugar para critérios frouxos. Doutro modo, nunca mais passaremos disto, continuaremos eternamente a «marcar passo». Vive-se numa confusão de valores e de conceito, que urge esclarecer definitivamente – o que só poderá ser conseguido quando os C. T. , ou outras entidades a funcionar como tal, para a admissão de obras, tiverem a coragem de se colocar numa posição e de se orientarem por um critério rigoroso como este o fez.
FRM/JLA – Quanto a si, terá constituído alguma utilidade a exposição das obras recusadas a par das admitidas?
JH – De grande utilidade. O critério do júri ficou assim plenamente confirmado e justificado perante a observação das obras recusadas e também nos mostrou que este C. T. Procedeu, repito, com coragem tão necessária para o presente estado das nossas Artes Plásticas.
FRM/JLA – Que significado lhe ofereceram as controvérsias surgidas como consequentes desse critério?
JH – Não estamos habituados a «encaixar» as decisões dos júris. É sempre desagradável ser-se recusado e é difícil conseguir-se uma certa «humildade» que me parece bastante «salutar». È o problema do «desportivismo ao perder»...
FRM/JLA – Como considera a sua obra apresentada, em paralelo com as suas realizações e dentro do Salão dos Admitidos?
JH –
É sempre difícil o artista manifestar opinião crítica, que não subjectiva, em relação à sua própria obra. No entanto, parece-me que a minha obra se integra plenamente dentro da linha e do mínimo de nível que me são habituais e foram exigidos para figurar no discutido Salão.

Friday, August 10, 2007

Ernesto Sampaio


Ernesto Sampaio (10-12-35, 05-12-01) colaborou em duas das mais importantes edições de Fernando Ribeiro de Mello: a Antologia do Humor Português e a Antologia do Humor Negro de André Breton. Foi responsável pela selecção e notas da primeira (em colaboração com Virgílio Martinho), escrevendo também o prefácio, quase se podendo afirmar que foi o autor da Antologia do Humor Português.
Na Antologia do Humor Negro foi tradutor com Aníbal Fernandes, Isabel Hub, Jorge Silva Melo, Luísa Neto Jorge e Manuel João Gomes. Traduziu os textos de Georg-Christoph Lichtenberg e Lewis Carrol.


Tudo Existe na Sombra (espécie de biografia, adapatda de In Memoriam no Bibliomanias):

Ernesto Sampaio foi um dos grandes teóricos do surrealismo, embora a sua obra seja curta e o seu temperamento tenha sido discreto. Disse ele, numa entrevista ao PÚBLICO (12-10-93): "Dá-me um certo prazer ser esquecido, assistir às coisas como se não existisse, como se não tivesse uma presença real, estar e não estar".
Este desejo de estar à parte, numa espécie de não visibilidade, tornou-o pouco conhecido dos leitores, mas um nome indispensável para o conhecimento das margens da literatura portuguesa contemporânea, ao lado, por exemplo, de Cesariny, Herberto Helder, Ângelo de Lima ou António Maria Lisboa. O próprio Herberto antologiou-o na sua obra "Edoi Lelia Douro" ("Assírio e Alvim", 1985) e escreveu sobre ele: "As reflexões sensíveis deste autor, os seus poemas - meditações ou como se lhes queira chamar - são dos textos mais agudos e corajosos que entre nós se escreveram, na modernidade, dentro da e sobre a "experiência poética".

Ernesto Sampaio nasceu em Lisboa em 1935. Considera a sua terra natal horrível, infestada de provincianos, de bimbos criminosos, mas mesmo assim, pelo menos a Ocidente, nunca viu outra melhor.
Infância e adolescência um tanto pasmadas: foi quase sempre último da classe até que de repente passou a ser o primeiro. Nesse mesmo ano abandonou os estudos e partiu à aventura. Voltou arrependido.
Depois como toda a gente, aceitou a canga do trabalho e deixou-se esticar pela roda infatigável do hábito e da rotina: foi actor, bibliotecário, jornalista [&ETC, DN, DL, Público], professor do ensino secundário, entre outras desvairadas profissões [foi tradutor de Artaud, Breton, Péret, Arrabal, Ionesco, Thomas Bernhard, Arthur Adamov, Walter Benjamin, Oscar Wilde, Eliot, etc] mas agora deixou-se disso. Ninguém sabe de que vive, nem sequer ele próprio, embora viva bem …” [in Feriados Nacionais, Fenda, 1999]

[Bibliografia: Luz Central (1957); Para uma Cultura Fascinante (1958); Antologia do Humor Português (1969); A Procura do Silêncio (1986); O Sal Vertido (1988); Fourier (1996); Feriados Nacionais (1999); Ideias Lebres (1999); Fernanda (2000)]

Monday, August 06, 2007

Folheto do Recital na SNBA

Apresentamos o folheto do Recital e Colóquio sobre a Novíssima Poesia Portuguesa que Fernando Ribeiro de Mello organizou no dia 26 de Outubro de 1963, na Sociedade Nacional de Belas Artes. Alguns poemas, onde se nota um ligeiro risco por cima, foram alvo da censura, sendo proibida a sua leitura no Recital.











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Uma Carta na Mesa


Da edição de Cartas na Mesa de Luiz Pacheco, 1996, da Escritor, onde Serafim Ferreira compilou 42 cartas e postais que o autor de Comunidade lhe endereçou entre 1966 e 1996, publicamos aqui partes da carta n.º 6, datada de 5 Outubro de 1966, onde surgem referências às Edições Afrodite.

Meu Caro Serafim Ferreira(1)

isto nada tem a ver com a sua carta, que me ficou de remissa entre outro correio pendente, porque a passada semana e esta segue na mesma, tenho andado a defender a pele (algo escoriada), a tentar por todos os meios continuar nesta nossa «liberdade» portuguesa, ainda assim preferível aos vinte meses de cadeia que me prometem para a Sertã, afora os dois processos literários de que, à hora derradeira, inventei testemunhas e contestação (para o da Antologia). Aqui, tomei a liberdade de o indicar como minha testemunha (aliás, o nosso Amigo António Paulouro é testemunha do Melo e Castro(2); aliás, ainda, até à véspera do julgamento posso modificar o rol, logo tudo dependerá, agora e sempre, da sua autorização). Como na notificação de culpa (eu já lhe mandei esse delirante documento?) está apontado que a Antologia(3) pode corromper a bela juventude, achei que me conviria, em vez dos figurões com cartaz nas Letras e nas Tretas, na Situação e na Oposição, oferecer os nomes de 3 jovens. E lembrei-me de si. Finalmente, vou ver se consigo que o seu artigo do Jornal de Notícias(4) seja lido em audiência. Com a sua presença, ali, o efeito ficará reforçado e completado. Mas diga o Serafim Ferreira de sua justiça, se lhe apraz, se lhe convém, se não, se está para isso(5).
O Vítor Silva Tavares é testemunha do Ribeiro de Mello; a Edite(6) escusou-se, e não insisti porque ela, coitada, sofre do coração. Mas naturalmente gostei de ver o nome do nosso Director do Fundão. Os processos (literários) já são três, com a apreensão do livro do Masoch e o Editor (Ribeiro de Mello) mai-lo prefaciador (testemunha do Ribeiro de Mello na Antologia), que é o eng. Júlio Moreira, também incriminado. Mais cabeça menos cabeça somos, para já: 13 réus, com o Editor a trisar, umas 150 testemunhas, fora Juízes, Imprensa, carcereiros, advogados (aí uma dúzia), milhares de punhetas batidas à conta do Sade e do Masoch, etc. etc. Há que reconhecê-lo: o Barbachas Mello tem topete. E não pára!
(…)
Mas não fantasiemos: dentro destes 8 dias a minha luta é com os Meretíssimos, o papel selado! 1.º Sertã, depois Antologia (ainda nem tenho advogado, requeri um defensor oficioso); depois, Sade, que já chegou à Boa-Hora, segundo informação do Ribeiro de Mello.


1 - Carta datada das Caldas, 5.Outubro.1966, com esta indicação à margem: «dizem que é feriado nacional. Eu usava luto, a ter gravata», e apenas por mim recebida em 13 desse mês.
2 - E. M. de Melo e Castro
3 - Referência à antologia organizada por Natália Correia, Poesia Portuguesa Erótica a Satírica, Ed. Afrodite, 1965.
4 - Artigo sobre Crítica de Circunstância (Ed. Ulisseia), que saíra no Suplemento Literário do Jornal de Notícias e a que já me referi numa das cartas anteriores.
5 - Respondi prontamente a Luiz Pacheco com esta carta, que é uma das poucas de que guardei cópia:
Meu caro Luiz Pacheco,
É evidente que estranhava o seu silêncio, mas compreendia que V. andasse atarefado com todas as arrelias provocadas pelo Melo, pelo Sade, pelos Tribunais, pelo frio, etc.., etc. Mas não vejo razão para continuar nos pifões, já que isso apenas contribui para agravar mais a sua disposição defensiva, neste caso, a sua posição de defesa como réu no banco dos réus. Respondo à sua longa carta, mas por partes para nos entendermos:
1)É claro que não lhe posso dizer que não, não recuso figurar no rol das suas testemunhas. Mas agradeço-lhe que me diga depois quais os pontos que interessa salientar, isto é, que me dê indicações sobre amaneira como tudo vai decorrer ou pensa que vai decorrer. Quais são as suas outras testemunhas? (...) Já sabe, pois, CONTE COMIGO na lista das suas testemunhas, mas resolva este simples pormenor e diga-me como o resolveu.

(...)
Covilhã, 14. Outubro.1966
Serafim Ferreira

6 - Edite Soeiro
...

Entrevista com o pintor Júlio Resende


Antes de enveredar pela edição de livros, Fernando Ribeiro de Mello chegou a ser colaborador do Jornal de Letras e Artes, conduzindo algumas entrevistas ali publicadas.
Na edição de 11 de Março de 1964 encontrámos uma entrevista ao pintor Júlio Resende (na foto).

Surgido no panorama das nossas Artes Plásticas em 1943, pela sua intensa actividade e presença, a partir de então, nas principais exposições do País, nalgumas do estrangeiro, nomeadamente, na Noruega, Bélgica e Espanha, pela representação, que a sua obra encontra em diversos Museus e Galerias nacionais e de além fronteiras, pelos inúmeros prémios com que tem sido distinguido (entre outros, citemos o de Armando Basto, Sousa Cardoso, Diogo de Macedo, Bienal de Arte de S. Paulo, Exposição de Artistas de Hoje e Exposição Gulbenkian) e ainda pela valiosa participação dispensada a empreendimentos artísticos, de assinalável vulto, alcançou um justo lugar de prestígio na Vanguarda da Moderna Pintura Portuguesa, posição constantemente confirmada pelo público e pela crítica.
É, pois, com regozijo que agora lhe registámos algumas declarações acerca do seu «métier», ou de problemas gerais com ele relacionados.

Fernando Ribeiro de Mello /Jornal de Letras e Artes – Quais os artistas, Júlio Resende, com que se sente mais identificado, ou maior influência e orientação prestaram à realização da sua obra?
Júlio Resende Essa pergunta implica desde logo que eu esclareça a minha posição estética. Não se trata de qualquer revelação, aliás, o afirmar a minha propensão para um certo tipo de expressionismo, porquanto essa tendência teima em subsistir através de diversas fases por que passei. Assim, será fácil deduzir quais os pólos da pintura universal que mais particularmente me tocaram. Espero não surpreender nem escandalizar ninguém ao manifestar o meu interesse por muitas formas expressionistas, desde a dos Primitivos Catalãos, até ao Grupo Cobra. Se insiste em nomes citar-lhe-ei alguns do expressionismo Ibérico e Flamengo: Goya, Solana, Picasso, Permeke, etc.
Esta citação que não induza em erro... Discordo por princípio, das posições extremistas. É bem verdade que na minha formação estética foi considerável a influência da obra, toda precisão, inteligência e pureza de um Della Francesca, dum Mantegna e de um Vermeer.
FRM/JLA – Presentemente que resultados pensa e procura atingir na sua pintura?
JR -
A Humanidade está braços com um problema de sobrevivência como nunca, e disso tem consciência. O homem perante um dilema de que é, afinal, o responsável, vê-se impotente para lhe dar uma saída satisfatória. É natural que a presença do homem na minha pintura, venha a tornar-se mais efectiva, já que ela nunca tenha estado arredada. Quanto à forma, ela expressa e confirma o conteúdo: dramatismo nas oposições dos valores, severidade cromática...
FRM/JLA – Crê no futuro da pintura abstracta?
JR – Admito que ela subsista, com a condição que seja salvaguardado aquele binómio que subentendi ainda agora: forma-conteúdo. O problema figuração-abstracção, se é que tal problema existe, não me preocupa. De resto, abstracção sempre se fez, sempre se fará. Quem com isto não estiver de acordo, que me aponte uma só verdadeira obra de arte onde se demonstre o contrário.
FRM/JLA – Acha que a Arte deve constituir um instrumento de acção social?
JR –
Entendo que a arte, se o é na realidade, envolverá fatalmente os seus aspectos sociais. O que lamento é que nem sempre se possa classificar de arte, aquilo que muitas vezes se pretende como tal...
FRM/JLA – Julga necessária uma preparação teórica para uma boa compreensão ou entendimento da pintura abstracta?
JR –
Para o entendimento da pintura abstracta, exige-se apenas o essencial para a compreensão de qualquer outro tipo de pintura. A cultura é precioso subsídio, claro está.
Ora o que me parece, é ser a sensibilidade uma faculdade susceptível de educação.
FRM/JLA – Pode-nos dizer, Júlio Resende, que razões ou objectivos o animam a realizar ou participar em exposições?
JR –
O imperativo de comunicabilidade, em primeiro lugar. Há outros motivos ainda, entre eles o de pretexto para observação psicológica da reacção do público, sem dúvida preciosa súmula de experiências onde se poderá auscultar a repercussão das obras apresentadas, dando ensejo, muitas vezes, a que se inicie uma nova fase de busca.
FRM/JLA – Como considera o actual meio português e, particularmente, o do Porto?
JR – Essa pergunta merece uma resposta cuidada. Não estarei nas condições ideais para o fazer, por desconhecimento directo daquilo que se produz hoje, em matéria de pintura, em Lisboa. Com o conhecimento do meio artístico do Porto e confiada nas apreciações críticas surgidas na Imprensa não terei relutância em afirmar que dispomos actualmente, de um bom grupo de artistas, de características particulares, que, se não são conhecidos além fronteiras, tal facto deve-se a várias circunstâncias, entre as quais, a falta de um plano que viesse a apoiar a efectivação de exposições nos grandes centros do estrangeiro. Seria uma medida de interesse nacional, e ao toma-la não faríamos mais do que seguir o exemplo de inúmeros países.
FRM/JLA – Por último, gostaríamos de saber o que Júlio Resende pensa acerca da nossa actual Crítica de Arte, no respeitante à sua missão de orientação do artista e elucidação do público.
JR – Não me custa admitir que dispomos de alguns críticos autorizados que estão cumprindo essa missão difícil no seu duplo aspecto: análise da obra e orientação do público.
Missão espinhosa mas altamente importante. Isenção, autoridade e coerência, serão porventura as qualidades que definem o verdadeiro crítico. Pena é nem todos disporem desses requisitos.