Wednesday, January 16, 2013

Comentário de Vitor Silva Tavares para Peregrinação & Cartas



1

Muitos anos depois, Fernão Mendes Pinto lançou-se na mais fantástica peregrinação da sua vida! Não se tratava já de enfrentar os muitos terríveis perigos de uma vida recheada de incidentes. Tratava-se de sacudir a memória; tratava-se de alquimicar o real vivido em imaginação viva; tratava-se da mais perigosa das aventuras: enfrentar o vazio com um discurso, vencer os obstáculos  e a aridez das palavras , conferir ao rumor obscuro a imediata limpidez do significante.

2

Não se tratava de copiar outra vez o que já estava copiado nas rugas da biografia. Tratava-se efectivamente de criar (inventar por e nas palavras).

Isto, meus amigos, ainda hoje os nossos neo-realistas não percebem – ou, se percebem, não praticam, ou praticam como se vê. Mendes Pinto é assim um escritor moderno, moderníssimo: se nele algumas das palavras perderam o uso por causa dos hábitos sociais (linguísticos) dos vindouros, não se perdeu nele o uso sábio (criativo, original) das palavras. É ler aquele português e apreciar gulosamente (eroticamente, já agora) os mais belos planos-sequência de toda a lusa linguagem!

3

Creio que na sua peregrinação pelo discurso fora não ocorreu a Mendes Pinto fazer o que os escolásticos chamam estilo. Digamos que ele queria fazer história, contando aquelas história todas e tão esdrúxulas. Também por isso Fernão Mendes Pinto é um escritor moderno: nas tintas para os ademanes palacianos da linguagem (o pronto-a-vestir literato, no leviano e oportunista decurso das modas), marca  com nervo e sonho o tempo e o lugar exacto do homem vivo, isto é: garante o bilhete de identidade da época e o passaporte para a história.

4

Dizem ou disseram os doutores realistas que o livro de Mendes Pinto não passa de uma exageração, de uma megalomania, de um acervo de aldrabices! Logo, não goza de verdade histórica!

Olhem que rica descoberta!

Vir aqui discutir se é verdade ou mentira o que Mendes Pinto narra como acontecimentos experimentados é vir discutir de novo o velho sexo dos anjos.

Claro que nem tem discussão: é verdade pura e simples! Estou a ver o escriba Mendes Pinto com uma pena na mão a ofender o vazio da folha: o instante é grave («é sempre a vida que se arrisca quando se afirma») – António Maria Lisboa), grave de mais para nele caber uma simples questão de fac-símile da tal realidadezinha sem-tirar-nem-pôr que os realistas tanto de esforçam por definir, encaixotar, legislar, impor única.

Então não havia de ser verdade? Então o discurso de Mendes Pinto não é em si mesmo autónomo, dispensando pois muito bem todos os efes e erres dessa tal coisa chata e amorfa que é a realidade dos doutores realistas?

A Peregrinação, meus amigos, é tão verdade que ainda mexe!

5

Ele há muitas e desvairadas formas de se viajar: porém, na literatura e assim ou assado, com ou sem recurso das viagens digamos físicas ou psíquicas efectuadas (as viagens de Fernão Magalhães ou do Fernando Pessoa, do Jack London ou do Henri Michaux, de barco ou de L. S. D.), viaja-se realmente pelo espaço da folha a preencher. Já o disse atrás: é uma viagem tormentosa, poucos saem dela com vida. Não que se negue a capacidade aventureira, a audácia, a rica experiência acumulada de muito viajante: porém, não chega. A viagem chegou ali o parou. Daí encontrarem-se a pontapé livros de viagens que são menos que pó em seus caixões literários. Os viajantes talvez até nem fossem maus, como andarilhos. O discurso é que não andava.

Ora o discurso (a viagem) de Mendes pinto é um discurso dinâmico.

Das razões escolares de tal dinamismo venha um linguista e fale. Tem matéria de sobra. Por mim, que sou leitor sem lápis na mão e para mais preguiçoso (há mais vidas), sempre direi que não me custa nada mergulhar naquelas frases longas e abundantes das mais variadas descrições (os tais planos-sequência) que imprimem à Peregrinação um ritmo tenso e permanente. Quero dizer: no quentinho de estar a ler um clássico (dedico esta frase a Luís Pacheco) envolvo-me sem fastio naquela ondulação rítmica, naquela grave e lenta respiração melódica, viajo também no seu discurso naїf e extravagante, de certo modo contido e superlativo, refaço-o e refaço-me como refaço a vida – montagem que julgo caótica mas sei-sinto ordenada de planos-sequência recheados de tudo quanto há, sem esquecer a memória dos espaços percorridos e a imaginação dos espaços a habitar. Afinal, esta constante proposta para a viagem de quem vive.

6

Pelo trajecto do seu discurso (se quiserem: da sua fala – que é sempre coisa viva e neste momento), Mendes Pinto botou seu contributo, sua impressão digital, sua mensagem, seu veredicto na história, não diluindo (antes reforçando, carregando no significativo, inventando para o exemplar) os contrastes morais e sociais da época. Também neles me revejo, eu sou outro e de outro tempo português.

A história é assim: um discurso que viaja.
Por isso vem até mim a peregrinação de Fernão Mendes Pinto.
Em trânsito, estou sempre muito agradecido aos excessivamente poetas!

Vítor Silva Tavares