Monday, October 15, 2007

Cesariny a ser introduzido na Antologia do Humor Português!



Num texto de Mário Cesariny, intitulado I – Reina a Paz em Varsóvia, publicado no jornal A Capital, 23-9-1970, e incluído na edição As Mãos na Água A Cabeça no Mar, pela Assírio & Alvim, em Setembro de 1985, encontramos o seguinte parágrafo:

Isto foi há meses, passou, perdeu qualquer interesse de citação e insere-se em linhas que a mim me vêm desde 1958, quando proibi, delicadamente, é certo (julgava eu que não era preciso ser grosseiro, ou formal), Jorge de Sena de me incluir na antologia dos líricos dele (Portugália Editora), e chegam ao ano em curso, no cujo reiteradamente não autorizei o editor Mello e os srs. Virgílio Martinho e Ernesto Sampaio, organizadores, a ser introduzido numa «Antologia do Humor Português». Do humor português! Também já não tem importância porque acabo de saber que anda em circulação um 45 r.p.m, recitador Barroca, com um poema meu acompanhado à viola.

Mas afinal, na «Antologia do Humor Português», Mário de Cesariny é um dos autores mais representados!
São seus os seguintes textos:

· Prefácio não publicado à edição não efectuada da primeira versão portuguesa de «une saison en enfer» de Jean-Arthur Rimbaud (fragmentos)
· Litania para os tempos de revolução
· Monografia
· Calçada do Cardeal
· Vida e milagres de Pápárikáss, bastardo do imperador
· Coro dos maus oficias de serviço na corte de Epaminondas, imperador
· Vinte quadras para um dadá
· Pena capital (fragmento)
· O gato dito doméstico (ou de Lineu)
· A cabeça de Arcaifaz (sismo)
· O berlinde berg

Saldos do Ano Acabado



Saldos do Ano Acabado – um texto de Mário Cesariny publicado no Jornal de Letras e Artes, do dia 29 de Janeiro de 1964, e que está incluído na edição As Mãos na Água A Cabeça no Mar, Assírio & Alvim, Lisboa, 1985, relatando uma sessão de leitura de poesia na Sociedade Nacional de Belas Artes, onde Fernando Ribeiro de Mello foi um controverso leitor de O´Neill. Cesariny não refere a data em que a sessão se realizou, mas tal como outra já apresentada nesta página, é provável que esta também tenha tido FRM na organização.

Saldos do Ano Acabado

"De entre as manifestações recitadas, e não foram poucas, que no ano passado surgiram destinadas a fazer conhecer poetas, ou novos poetas, só a uma me foi dado assistir: avisado a tempo por voz amiga de que ia dar-se não sei que provocação na sala – o salão da Sociedade Nacional de Belas Artes – não pude deixar de ir, para o caso se ser preciso observar. Para conforto e sossego de todos, tal não chegou a acontecer. Iniciada a sessão, cujo projecto de base era porem-se os poetas que vivem em Lisboa, e alguns de fora, a dizer os poemas próprios para regalo de pública assistência – projecto que logo falhou porque alguns resistiram, não foram, outros, como o autor destas linhas, foram mas não quiseram – iniciada a sessão, e depois de bem enxovalhado o poeta Almada Negreiros, que a abrira, esta caiu no normal e vulgar assassinato amador de poesia que é regra no nosso tempo, nos nossos salões, e entre o nosso público, por mais que uma ou duas consciências mais avisadas se misturem às organizações e tentem promover.
Na parte que mais de perto me tocou, a grande actriz Mariana Rey Monteiro, dignando-se ler um pequeno poema meu, enganou-se logo no primeiro verso, e a sua voz bem modulada e o sortilégio da sua figura levaram o público, a galope, para as montanhas da Hélada, a mim aquele erro soube-me a aviso sumário. Seguiu-se o grande actor Paulo Renato que também leu um poema. Estava despachado. E diga-se: sem especial motivo de queixume, pois, embora a minha recusa (desagradável), os meus pequenos poemas haviam sido confiados a artistas probos, do melhor que o nosso teatro tem e que sem dúvida deram o melhor que o seu tempo e a sua arte permitem. Mas eis que entram os revolucionários! Contra a minha expectativa, que os esperava na sala, no meio do público aturdido, eles estavam no estrado dos recitadores, eram eles os recitadores! Ouvi um poema de Alexandre O´Neill dito por Fernando Ribeiro de Mello, que era uma carnagem sem ferio, a dente e a cutelo, à obra lida. E o «recitador», agradecendo as vaias e os aplausos, batia com a mão no papel lido, exclamando: É assim mesmo! Toma lá cinco! Tintos, respondiam da sala! Seguiram-se outros poetas, também por leitura: irreconhecíveis! Às duas da manhã ainda havia gente a ver passar os enterros. A alegria era geral. Salvavam-se do massacre Natália Correia, António Gedeão, que disseram muito bem os seus poemas, David Mourão-Ferreira, bastante ovacionado, Armindo Rodrigues, apesar da voz sumida. Os outros, eram um chão de Alcácer-Kibir.
Esclareço que não é minha intenção atacar este recital, ou pseudo-recital, de poesia, ou este em especial. De há alguns anos para cá, com a chegada de uma gente nova – que responde, aliás, ao rabo-leva de «novíssima» que está a dar na poesia última em data – que estes recitais (poesia lida) se sucedem com o agrado evidente de quem lê não lhes custa trabalho nenhum, é abrir o livro emprestado e zás, dar à língua e altear a dextra mantendo firme a canhota, e a admiração de quem escuta, que também não dá trabalho; é conservar a cadeira e voltar para casa incólume. Era minha intenção, sim, mas não sei se o faça já, se o faça já aqui, pedir às pessoas idóneas, mas, mais lato e mais forte, se possível, à em principio bela, magnifica juventude por conta da qual corre, na sua maior parte, a organização destas leituras, que se deixem disso, porque estão a ser enganados: por si próprios, pelo público e pela crítica."

Eu Pertenci à KGB, de Aleksei Myagkov

(edição de Abril de 1977)



Tradução de Anabela da Silveira
Revisão literária de José Martins Garcia
Capa de Nuno Amorim
Colecção Documentos
Edição e arranjo gráfico de Fernando Ribeiro de Mello / Edições Afrodite

Na contracapa

Na sua qualidade de oficial ao serviço da terceira repartição da K. G. B. na Alemanha Oriental, o autor encontrava-se numa situação privilegiada para observar a esmagadora operação de contra-espionagem montada pela União-Soviética contra a Alemanha Ocidental, Berlim-Oeste e as forças americanas, britânicas e francesas estacionadas nestes territórios.
Mais de 1000 agentes dedicam-se inteiramente à observação dos movimentos dos Aliados, tentando, além disso, persuadir – ou mais frequentemente chantagear – as pessoas para que estas se tornem agentes.
A K. G. B. obtém notável sucesso no recrutamento de Alemães Ocidentais que visitam a Alemanha de Leste. Esta missão inclui-se numa tarefa de rotina dos Serviços Secretos Soviéticos, que é a de colocar informadores dentro das forças armadas soviéticas e entre os Alemães de Leste, informadores que denunciem os colegas e os seus concidadãos, criando assim a "rede do terror” que ajuda a sufocar resistência dentro do império comunista.

De e sobre Masoch

Sacher Masoch, cá por casa, noutros livros que se recomendam:



Sade Masoch, de Gilles Deleuze. Edição Assírio & Alvim, Penisulares / Nova Série / Ensaio 4, Lisboa, Setembro de 1973. Tradução de José Martins Garcia

A pergunta: o masoquismo é feminino e passivo, o sadismo viril e activo? Só tem uma importância secundária. Esta pergunta pressupõe a existência do sadismo e do masoquismo, a conversão de um no outro a sua unidade. O sadismo e o masoquismo não são respectivamente compostos por pulsões parciais, mas figuras completas.







Don Juan de Kolomea, de Sacher Masoch. Edição Antígona, Lisboa, 1980. Tradução de D. Luiz da Cunha.

D. Juan de Kolomea ignorado entre tantas outras produções Tenóricas, de Tirso de Molina a Mozart, é das mais violentas e anatemáticas personagens que se puderam, até hoje, construir e realizar.
Levando consigo o desejo do gozo sem limites na sua forma mais profunda, o amor, luta desesperado contra as violentações sociais, assumindo-as como livre escravo a que todos estamos sujeitos sem a destruição do logro em que vivemos. E – sinistro destino – aquilo a que o sistema mercantil torpemente o condena, a paternidade, é a negação do Amor.
(da introdução)

Prefácio à 2.ª edição da Vénus




Prefácio à 2.ª edição de A Vénus de Kazabaïka, de Sacher-Masoch (Relógio d’Água Editores, 1994).
Escrito por Ana Hatherly, é um interessante e raro documento sobre Fernando Ribeiro de Mello e as suas Edições Afrodite.

"Em 1966, quando foi publicada pela primeira vez esta tradução da célebre Venus à la forrure, de Sacher-Masoch, estava-se em plena guerra colonial, os ecos do Surrealismo (que surgira entre nós na segunda parte do século) eram ainda fortes e discutia-se acaloradamente a actividade editorial de Fernando Ribeiro de Mello, esse jovem que poucos anos antes viera do Porto.
Quando Fernando Ribeiro de Mello chegou a Lisboa no início dos anos 60, rondava os 20 anos de idade. Era pequenino, franzino, loiro, nervoso, libidinoso e excêntrico. Apesar de todo o seu dinamismo tinha algo de antiquado na sua aparência, um quê de século XIX, que aliás cultivava. Usava grandes bigodes retorcidos, barbicha e, em vez de gravata, uma lavallière.
Fernando Ribeiro de Mello tinha poucos recursos financeiros mas um grande cabedal de imaginação e audácia que, mais tarde e durante um certo tempo, viriam a fazer dele um editor destacado neste país. Porém, em 1991, quando morreu com 50 anos de idade, há muito que estava já arruinado.
Conheci-o pouco depois de ele começar a circular por Lisboa. Foi em casa de Natália Correia, cujo salon eu frequentava e que era então um ponto de encontro obrigatório para a intelligentsia anti-fascista da capital, simultaneamente aguerrida e boémia.
Natália Correia tornou-se mentora do audacioso jovem, influindo na programação das suas primeiras publicações, que surgiram com a chancela de Afrodite, Edições de Fernando Ribeiro de Mello. Até 1966 já tinham saído volumes como O Vinho e a Lira, de Natália Correia, e a Antologia de Vanguarda – 4 Autores da Novela Portuguesa Contemporânea, edições de qualidade, como outras que se lhe seguiriam.
Mas Fernando Ribeiro de Mello publicara também uma tradução do Kama-Sutra, uma tradução da Filosofia na Alcova, de Sade, e a célebre Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia, que tanta celeuma levantou.
O conjunto destas edições, consideradas escandalosas, teve um impacte enorme na sociedade da época em virtude da violenta repressão que suscitaram: as obras foram apreendidas, o editor processado, alguns colaboradores responderam em tribunal por ofensa à moral pública.
Foi neste quadro de agitada perseguição a Fernando Ribeiro de Mello e suas edições proibidas que surgiu a minha tradução da Vénus de Masoch. É claro que eu estava perfeitamente ao corrente de tudo o que se passava, porque também eu o apoiava, e quando a tradução apareceu e foi imediatamente apreendida, ninguém se admirou – e eu muito menos.
Com mais esta publicação apreendida, a perseguição a Fernando Ribeiro de Mello redobrou, e o pobre rapaz, não tendo já onde esconder os livros que tinha em armazém (Kama-Sutras, Sades, etc., que vendia às escondidas), pediu-me autorização para guardar em minha casa alguns deles enquanto as buscas estavam no auge, ao que eu acedi, empilhando no quarto da criada grande quantidade dessas obras que a polícia procurava.
Nessa altura eu morava num belo apartamento no Bairro Azul, na Rua Fialho de Almeida, e quando a PIDE veio revistar a minha casa por ter recebido uma denúncia, a sua visita era esperada. O agente que veio, porém, concentrou a sua atenção na minha biblioteca, onde havia muitos livros então proibidos, não se lembrando de revistar o quarto da criada, pelo que não viu os livros de Fernando Ribeiro de Mello aí escondidos.
A respeito deste incidente escrevi um pequeno poema que só publiquei muito mais tarde (em Poesia 1958-78) e que incluí num grupo intitulado Poemas de Crítica e de Revolta, 1964/66. Reza assim:

Bateu à porta o agente
mostrou o cartão e disse
fomos informados.
Entrou
percorreu a casa toda
revistou revistou os livros.
Era já tarde
era a segunda vez.
Disse
tenha cautela.
Saiu.
Fechou a porta.
Fechei-me.

A primeira edição desta versão portuguesa da Vénus de Masoch, hoje uma raridade bibliográfica, foi portanto apreendida, mas embora a minha casa tivesse sido revistada, eu nunca fui verdadeiramente molestada pela PIDE, nem tive que responder em tribunal. É que a obra, embora fosse claramente transgressora, inclusive por estar integrada no conjunto das edições proibidas de Fernando Ribeiro de Mello, realmente não continha nem palavras, nem actos, nem imagens obscenas, e mesmo as ilustrações que a edição oferecia eram mais divertidas do que chocantes.
Na verdade, toda a novela, em si, para o público de hoje como para o público de então, é talvez mais divertida do que erótica, mas nem por isso deixa de ser uma obra impressionante, porque, para além de tudo o que nela hoje nos pode parecer ingénuo e até um pouco cómico, contém um substrato de facto perturbante que acaba por impor-se em nós duma forma insidiosa e persistente. Não foi por acaso que tal obra, literariamente pouco significativa, chamou a atenção de Havelock Ellis e dos estudiosos da psicologia da sexualidade em geral, os quais, definindo masoquismo e sadismo, reconheceram a dor como fonte indissociável do prazer erótico – mas não há prazer que não seja erótico, sensual.
A íntima ligação que existe entre o erotismo e o sofrimento, entre o prazer e o sacrifício, é hoje um dado adquirido, mas nunca foi desconhecido dos mártires nem dos tiranos de todos os tempos – todos estamos ainda lembrados das horríveis facetas que assumiu no nazismo e no fascismo.
A minha tradução desta Vénus de Masoch, integrava-se, portanto, num plano geral de edições destinadas a subverter, a agitar, a perturbar um estado de coisas contra o qual poucas armas tínhamos na mão e que só a sublevação de Abril de 1974 pôde derrubar.
O meio literário de então, numa época em que era difícil ser-se independente, pode dizer-se que estava dividido em dois grandes grupos: dum lado, os escritores francamente do regime, cujos nomes eram bem conhecidos; do outro, os contestatários: os neo-realistas, defensores do realismo socialista; os surrealistas, já em fase final; os experimentalistas, em fase nascente. Destes três, nenhum apoiava o outro, mas todos convergiam no seu sentido de contestação, na sua acção sub-vertora, na sua intervenção contrária ao poder estabelecido. E se os neo-realistas pareciam desprovidos de sentido do lúdico, entre os surrealistas e os experimentalistas dominava o sentido do humor, uma das suas armas mais poderosas.
Na primeira fase da acção editorial de Fernando Ribeiro de Mello – anos 60 e 70 – encontra-se, de certa forma, cristalizada toda uma linha de pensamento criativo que grandemente deriva do Surrealismo-Abjeccionismo, nessa altura já no fim como movimento, mas cujos eflúvios pairavam ainda no ar.
E claro que em 1966, quando surgiu a Vénus de Masoch, já tinha havido a Poesia 61 e afirmava-se já a Poesia Experimental, a cujo grupo eu pertencia e que se demarcava claramente do Surrealismo, mas havia ainda um forte clima de subversão surrealizante, em que a tendência nacional para o escarneo-e-mal-dizer se revia, estimulando um discurso de pendor mais ou menos anarquista, carregado de subentendidos e alusões de todo o tipo, que incitava à insubordinação ao mesmo tempo que dava lugar a um gozo cheio de malícia.
A acção de Fernando Ribeiro de Mello, ilustrativa do clima social em que surgiu, representava também coragem, originalidade e capacidade de intervir criativamente numa sociedade dominada pelo marasmo e oprimida pela bruta mão da censura. E se bem que Fernando Ribeiro de Mello tivesse posteriormente incluído na sua programação obras de carácter sério e até clássicos, como a História Trágico-Marítima, a Arte de Furtar e a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, a imagem que dele porventura se conservará é a do editor um pouco louco que pôs em prática um programa de trabalho inovador em que empenhou toda a sua vida.
As circunstâncias desta edição portuguesa da Vénus de Masoch, passados quase 30 anos, começam a ter interesse histórico.
Quando Fernando Ribeiro de Mello me pediu para fazer a tradução, acedi com prazer, pois eu estava em sintonia com o espírito transgressor da sua actividade editorial. Diverti-me imenso a traduzir e a colaborar nos aspectos editoriais para que fui chamada.
Júlio Moreira, jovem arquitecto paisagista e escritor ligado ao Surrealismo-Abjeccionismo, foi convidado a fazer o prefácio. O gráfico foi o arquitecto António Sena da Silva, grande amador de fotografia, que também foi o autor das ilustrações que tanto enriqueceram a edição. Nessas ilustrações, os figurantes eram: um empregado do armazém de Fernando Ribeiro de Mello e a mulher da limpeza, uma atraente morena. A caracterização e a encenação estiveram a cargo do pintor João Vieira, que se encarregou também de arranjar adereços. A cadeira foi emprestada por Natália Correia. O cenário era simplesmente um canto do armazém onde Fernando Ribeiro de Mello guardava os livros que editava.
Não assisti à sessão de fotografia nem fui eu quem seleccionou as fotos para as ilustrações, que nitidamente obedeciam a um plano, mas fui eu que escolhi as legendas, aspecto importante, uma vez que as fotos correspondem a diversos passos da narrativa que era necessário identificar correctamente.
Pelo seu estilo saborosamente ingénuo, as ilustrações incluídas nesta edição contribuíram para acentuar o carácter kitsch e transgressor da obra, tornando-se um chamariz irresistível para o público.
Quanto à capa, fui eu que escolhi a gravura, que representa uma Vénus de Ticiano a que no texto de Masoch se faz referência, mas não fui eu quem fez a maquette. Estilisticamente, a gravura da capa entrava em conflito com as ilustrações no interior do texto, mas infelizmente não pudemos ter acesso à outra Vénus que Masoch descreve e que provavelmente só existiu na sua imaginação – uma bela mulher de opulenta cabeleira, deitada nua sobre um sofá coberto de peles de zibelina, brincando despreocupadamente com um chicote e tendo a seus pés um homem humildemente deitado como um escravo, como um cão.
A figura que Masoch elegeu para heroína desta novela, é característica duma época em que estava em moda um certo tipo de aristocrata eslava, tirânica e caprichosa, de que Catarina da Rússia foi o epítome, dando origem a um paradigma que faria fortuna até à primeira metade do nosso século.
Quando dei o título de Vénus de Kazabaïka a esta minha tradução não foi só pela dificuldade de traduzir literalmente o título original – Vénus im Pelz –; foi também porque tive em mente as características étnicas da obra. A kazabaïka, que é uma pequena jaqueta de veludo guarnecida a pele, usada pelas mulheres eslavas, desempenha um papel importante nesta narrativa, quer nas recordações da adolescência de Séverine quer nas intervenções erótico-punitivas de Wanda, fazendo parte integrante do contrato celebrado entre os dois amantes. A kazabaïka de Wanda, segundo nos dizem no texto, era debruada de arminho e fazendo parte do seu arsenal de sedução, tinha um valor fetichista determinante para Séverine.
O universo sensual de Wanda e Séverine assenta num luxuoso ambiente de alcova em que as preciosas peles de certos animais desempenham um papel de estimulante sexual, pela suavidade do seu toque e pelo calor que proporcionam, aspecto que no texto se refere como importante.
Quanto ao azorrague, trata-se de um kantschuck, que nos dizem ser uma espécie de longo chicote de cabo curto, como o que o próprio Séverine possuía e que irresistivelmente nos recorda o chicote do domador de feras.
Todos estes elementos se tornaram posteriormente adereços obrigatórios no cenário erótico sadomasoquista, e como tal, nas ilustrações que foram inseridas na tradução, também surgem representados, à sua maneira.
O comportamento sádico da mulher que caracteriza esta Vénus de Masoch, para além dos aspectos étnicos já referidos, tem uma longa história cultural, remontando claramente a Circe e a Messalina e ao modelo da belle dame sans mercy, paradigma cortês da femme fatale que se prolonga até à vamp cinematográfica.
Os grupos feministas da actualidade poderão fazer desta novela, e em particular da figura de Wanda, outra leitura, vendo nela uma espécie de revanche sobre o machismo tradicional, mas a verdade é que, nesta novela, a vítima voluntária e feliz é um homem, um masoquista que se deleita ao ser cruelmente tratado e flagelado por uma mulher. Verdade é também que a história cultural nos ensina que o predominante papel de vítima que a mulher tem desempenhado ao longo dos tempos na sua relação com o homem, nem sempre terá sido tão desprovido de prazer como se julga, arrastando consigo, para além do imenso deleite da entrega, a ufania do martírio.
Sadistas e masoquistas, portanto, necessitam-se mutuamente, não podendo existir uns sem os outros. Essa é a lição que a história e o quotidiano nos ensinam, e como Masoch nos diz no final desta novela: quem se deixa chicotear, merece-o."

Lisboa, Maio de 1993
Ana Hatherly

Agradecimentos do Afrodite a Rui Almeida.


A Vénus de Kazabaïka - Ilustrações - 2.º

Últimas (quatro) ilustrações. Clique nas imagens para aumentar.










A Vénus de Kazabaïka - Ilustrações - 1.º

Primeiras (cinco) ilustrações. Clique nas imagens para aumentar.
















"O gráfico foi o arquitecto António Sena da Silva, grande amador de fotografia, que também foi o autor das ilustrações que tanto enriqueceram a edição. Nessas ilustrações, os figurantes eram: um empregado do armazém de Fernando Ribeiro de Mello e a mulher da limpeza, uma atraente morena. A caracterização e a encenação estiveram a cargo do pintor João Vieira, que se encarregou também de arranjar adereços. A cadeira foi emprestada por Natália Correia. O cenário era simplesmente um canto do armazém onde Fernando Ribeiro de Mello guardava os livros que editava.
Não assisti à sessão de fotografia nem fui eu quem seleccionou as fotos para as ilustrações, que nitidamente obedeciam a um plano, mas fui eu que escolhi as legendas, aspecto importante, uma vez que as fotos correspondem a diversos passos da narrativa que era necessário identificar correctamente.
Pelo seu estilo saborosamente ingénuo, as ilustrações incluídas nesta edição contribuíram para acentuar o carácter kitsch e transgressor da obra, tornando-se um chamariz irresistível para o público." Ana Hatherly, no prefácio da segunda edição de A Vénus de Kazabaïka, de Sacher-Masoch, (Relógio d’Água Editores, 1994)

A cinta da Vénus

Monday, October 08, 2007

Prefácio com hidras

Leopold von Sacher Masoch


Fragmentos do prefácio de Júlio Moreira, intitulado, Nós e Masoch, para a edição de A Vénus de Kazabaϊka:

Nós

Recordam-se por certo de ter estudado a anatomia e o habitat das hidras.

Os animais de jardim zoológico impressionam-nos muito mais que os animais «didácticos», cuja violência se limita em geral às descrições de compêndio. Autores tão respeitáveis como Borges chegam a considerar que uma das prováveis origens para as neuroses, tão comuns no nosso tempo, são as visitas que todos teremos feitos, em tenras idades, aos jardins zoológicos. Sem contestar a importância do impacto com a avestruz, a girafa ou o crocodilo, que bastam para romper os quadros da nossa experiência anterior, tenho de reconhecer o primado da hidra no bestiário da minha infância.

Essa fascinação do humilde animal que habita os tanques dos jardins onde corremos atrás do arco ou jogamos à cabra-cega, tornou-se mais tarde, na idade cartesiana que todos nós atravessamos, e por certo antecede, no plano da experiência individual, o próprio filósofo que lhe deu o nome, um objecto de particular inquietação.

Com ou sem fundamento, acabei por explicar a fascinação da hidra pela invulgar característica que apresenta de funcionar com toda a «sua» plenitude tanto do direito como do avesso.

Essa explicação, se foi suficiente para me tranquilizar no período seguinte da minha evolução (dum feroz humanismo canibalesco), foi pela súbita projecção duma aparência humana que realizei nas vulgares hidras dos tanques.

Tudo se passou como se, tendo focado num plano de atenção mais próximo numa hidra comum, tivesse ultrapassado os preceitos de escala e de forma que condicionam a visão convencional do mundo, e me encontrasse perante uma maravilhosa criatura cuja silhueta, movimento e significado ontológico correspondessem em tudo a uma casual amostragem dos meus semelhantes que frequentam os estádios desportivos ou se pasmam perante a magia da televisão.

Muitas vezes, posteriormente, ao reconhecer-me pela manhã, no espelho embaciado da casa de banho, me identifiquei com as hidras que desde sempre me tinham fascinado. Assim me salvei, aliás, de toda e qualquer acusação de aristocracia que pudesse vir a ser-me dirigida.

INTROSPECÇÃO

O que distingue a hidra dos outros animais é a perfeita identidade do interior e do exterior.

Experimentemos virar uma hidra do avesso: sem a menor perturbação ela continua a agitar a verde corola de flagelos, a dobrar-se em passos sucessivos de dança.

É difícil evitar as antropomorfizações – que dominam todas as nossas concepções do universo, as mais abstractas – quando nos debruçamos sobre a existência privada das hidras.

Além da hidra, o homem será o único animal da criação cuja interioridade se confunde e identifica exactamente com o mundo exterior. Mas tal como sucede com as hidras, o virar-se do avesso como um dedo de luva, não é uma situação natural: alguém terá de cometer o atentado, desensimesmar o corpo até que as noções de interior e exterior se tornem meros dados relativos ao local e ao momento.

Quem sabe, entretanto já no plano arbitrário das conjectures, se no maravilhoso período da adolescência, as hidras não se entregam a uma apaixonada introspecção, se não desejam acima de tudo «encontrar-se»?

A FLAGELAÇÃO

Um facto único, e aparentemente secundário, distingue homens e hidras: a flagelação.

A anatomia bastará talvez para explicá-lo: a hidra é provida de flagelos, ao passo que o homem falho desse poderoso elemento anatómico, terá de procurá-lo fora de si.

A flagelação constitui na verdade o meio mais corrente para realizar esse ideal complexo e vago, que precipitadamente, talvez, defini como «encontrar-se», de acordo com a terminologia adoptada em certos níveis de evolução intelectual.

Tomada como meio de ascenção, desde a existência lodosa dos impulsos até ao luminoso nível da consciência, a flagelação chega frequentemente a ser tomada, em si, como um ponto de chegada, uma maneira de estar no mundo, e daí a tornar-se um esquema ideal de existência.

Não falemos já da flagelação praticada como meio de ascese pelos anacoretas e por e por todos aqueles que tomam pelo aventuroso caminho do martírio voluntário, ao encontro da própria imagem ampliada pela ambição e pelo medo da morte. Esse caso limite toma nos nossos dias aspectos mais amáveis, continuando o azorrague e os e os cíclicos a actuar apenas pelo valor simbólico de que se revestem, representados nas imagens dos santos que vamos venerando.

A evolução dos costumes, libertando-nos das penitências, procuradas ou impostas, privou-nos também das alegrias da flagelação.

Hoje, a sobrevivência desse rigoroso costume, tendo-se multiplicado numa profusão de formas por vezes difíceis de identificar, manifesta-se sobretudo na prática do acto sexual.

(...)

NEUROSE

A medição entre o impulso e o acto constitui uma verdadeira flagelação, logo, um meio de ascese. Mas uma verdadeira ascese conduz a um plano de realização superior, como seja a fusão final do indivíduo no espírito universal, ou, mais modestamente, ao «encontrar-se», que tão frequentemente se confunde com ter automóvel e frigorífico.

Para o comum dos mortais, encontrar-se, é mesmo assim um luxo raro, que rapidamente se rejeita, por desistência.

Negado o impulso original, incapaz de guindar-se às realizações superiores, o indivíduo comum, normal, fica sujeito à invasão do mundo exterior, è compensação fácil dos espectáculos baratos que o dia a dia nos oferece.

Daí a identificação ontológica com a hidra, a reversibilidade do interior e exterior.

A violência que essa situação implica, por melhor que seja a sua aceitação, vai deixando que mais tarde se tornem sensíveis, alteram o comportamento, anulam a pureza original dos reflexos.

(...)

A Vénus de Kazabaϊka, de Leopold von Sacher Masoch

(edição de 1966)



Tradução de Ana Hatherly
Prefácio de Júlio Moreira
Colaboração gráfica de António Sena
Capa: Vénus ao Espelho – Ticiano (Museu de Washington)
Edição Integral